A desigualdade milenar de gênero se revela de maneira expressiva também na autonomia financeira de homens e mulheres. No século XIX, as mulheres foram incluídas gradativamente no mercado de trabalho, contudo, indubitavelmente, o "trabalho no lar" -- atividades domésticas e cuidados com os filhos e demais parentes -- ainda lhes pertence até os dias atuais.
No Brasil, no ano de 2018, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que mulheres se dedicam aos trabalhos dólar 73% a mais que os homens (IBGE, 2018, p. 3).Por outro lado, um dos fatores mais comuns para a manutenção de um relacionamento abusivo/violento com o parceiro é a dependência econômica da vítima.
A nota técnica Violência doméstica e familiar contra a mulher (SENADO, 2017, p. 33) demonstra que 29% das mulheres entrevistadas têm a questão financeira como motivação para não denunciar a violência. (BAZZO, BIANCHINI, CHAKIAN, Juspodium, 2023)Considera-se a pertinência de se falar que o trabalho realizado pelas mulheres não depende exclusivamente de seu próprio interesse, mas de demandado mercado e das suas próprias qualificações para inseri-las, tudo numa articulação complexa de aspectos pessoais e familiares, principalmente no sentido de conciliação com deveres da maternidade.
No ano de 2023, ainda não existe isonomia salarial entre homens e mulheres, e, assim, mesmo quando não estão em um estado de total dependência, elas recebem salários inferiores. Também em momentos de crise financeira, são as mais afetadas pelo desemprego. É possível compreender que a desigualdade na divisão sexual do trabalho ainda é uma barreira para a equidade de gênero (ABREU,2015).
Recentemente, o Governo Federal formalizou uma iniciativa visando à superação desse problema, a partir da informação, formação, capacitação financeira de mulheres. Aportaria número 26 do Ministério da Fazenda instituiu o Programa "Mulher Cidadã - cidadania fiscal para mulheres", em fevereiro de 2023. Baseado no inciso I do parágrafo único do artigo 87 da Constituição Federal, destina-se à promoção da cidadania fiscal e disponibilização de ações de capacitação a todas as mulheres empreendedoras em situação de vulnerabilidade ou de risco social.
O programa pretende atender ao fortalecimento financeiro de todas as mulheres brasileiras, e especialmente aquelas em situação de violência: Art.2º São finalidades do Programa "Mulher cidadã - cidadania fiscal para mulheres:
I- prover instrução e orientação para que mulheres em situação de risco e vulnerabilidade possam empreender;
II- auxiliar mulheres em situação de vulnerabilidade ou de risco social na aquisição de autonomia financeira e obtenção de renda, em benefício de suas famílias e comunidades;
III- apresentar as vantagens decorrentes da formalização empresarial, notadamente em relação à segurança social;
IV- promover a educação fiscal e seus aspectos básicos, a compreensão da função socioeconômica dos tributos, o fomento ao controle cidadão dos gastos públicos, a solidariedade contributiva, proporcionalidade da capacidade de contribuição e justiça fiscal;
V- promover a educação financeira, securitária e previdenciária;
VI- auxiliar a regularização fiscal;
VII- aproximar profissionais e estudantes das áreas fiscal, jurídica e financeira da realidade de mulheres em situação de risco e de vulnerabilidade social, favorecendo trocas educativas;
VIII- apoiar projetos sociais cujos objetivos e atividades sejam aderentes à atenção e à minimização das situações de risco e de vulnerabilidade social vivenciadas pelas mulheres;
IX- identificar mulheres, em situação de risco e de vulnerabilidade social, interessadas em empreender, proporcionando-lhes acompanhamento e apoio, mediante a realização de ações de cidadania fiscal capazes de alicerçar um empreendimento seguro;
X- estimular a participação ativa do cidadão na construção de uma sociedade mais justa, atuando e fiscalizando políticas públicas e apropriando-se de sua responsabilidade na promoção do desenvolvimento sustentável;
XI- capacitar servidores públicos para a atuação responsiva perante a sociedade, mediante interações que promovam cidadania fiscal.
As ações serão realizadas por meio dos Núcleos de Apoio Contábil, Jurídico e Fiscal (NAF) em cooperação com instituições de ensino, que levarão assistência fiscal, jurídica e financeira deforma gratuita, presencial ou remota, a mulheres em situação de risco e de vulnerabilidade social, microempreendedoras individuais, organizações da sociedade civil e pequenas produtoras rurais.
Em suma, as ações de capacitações englobam a oferta de conhecimentos técnicos, suporte e mentorias, que favoreçam o ato de empreender. Para superar essas situações socialmente indesejadas, torna-se necessária a ação efetiva do Estado, pelas várias formas e possibilidades que dispõe, implementando políticas públicas voltadas a essa finalidade, e de forma concreta e permanente.
Para isso, faz-se imprescindível a formalização de programas governamentais, que sejam incluídos nos orçamentos públicos, somando-se ou aperfeiçoando os já existentes, que tenham consistência e recursos disponíveis, de modo permitir a viabilização de ações. E que envolvam todos os entes da federação e setores das diversas administrações públicas, de forma coordenada e em cooperação, bem como participação dos poderes e instituições governamentais e não governamentais.
Fomentar a participação do setor privado, com incentivos fiscais e financeiros são medidas também úteis e que integram toda a sociedade na busca das melhores soluções para as múltiplas questões dessa causa que é complexa - e cujas soluções não serão simples, mas precisam ser alcançadas. Isso é fundamental também e principalmente para permitir que, pela transparência e controle, institucional e social, a sociedade tenha instrumentos concretos para que possa se conscientizar e estar vigilante no uso dos recursos públicos e atuação dos governantes nessa causa.
A mulher e suas múltiplas vulnerabilidades milenares devem ser objeto de atenção na área orçamentária, e as legislações recentes, principalmente no âmbito do Direito Financeiro, trazem uma esperança de que isso está efetivamente acontecendo.
*Carol Alves, Presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB/Joinville, mestranda em Direito Tributário
*Mariana Seifert Bazzo, Promotora de Justiça no Ministério Público do Estado do Paraná desde de 2004. Doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP).
*José Maurício Conti, Professor Associado III da Faculdade de Direito da USP, com experiência e ênfase em Direito Financeiro. Foi Juiz e Direito do Estado de São Paulo, atualmente aposentado.
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