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Ciência comportamental, compliance e análise de risco: é possível melhorar a efetividade?

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Por Victor Ferreira Arichiello
Victor Ferreira Arichiello. Foto: DIVULGAÇÃO

Que compliance é fundamental, é desnecessário repetir. Mas será que o modelo atual dos programas de integridade permite que seja atingida a efetividade adequada?

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A eficácia de um programa de compliance está ligada a diversos fatores, como: (i) diminuição de práticas lesivas, como fraudes, assédios e corrupção; (ii) existência de denúncias - sua ausência não indica que o programa é perfeito, ao contrário -; (iii) compreensão dos códigos e políticas e; (iv) mudança de comportamentos.

Esse último ponto, um dos mais importantes, tem espaço para melhorias. Como? Com ciência comportamental.

Em artigo anterior[i], abordamos, ainda que de forma superficial, a teoria de que as decisões corporativas, mesmo complexas ou criminosas, não são tomadas racionalmente, mas com base na intuição. Trouxemos também experiências que estão sendo conduzidas em bancos europeus e norte-americanos com a aplicação de ciência comportamental para tentar uma mudança de cultura, embora não voltada necessariamente para o compliance.

Mas como aplicar isso aos programas de integridade? E qual o potencial da ciência comportamental nessa área?

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As respostas parecem mais complexas do que realmente são.

É preciso deixar claro que a ciência comportamental pode ser aplicada em todas as fases da implementação e revisão de programas de integridade, por exemplo na elaboração da matriz de risco, na elaboração do código de ética e das políticas, nos treinamentos etc. Aqui versaremos sobre a primeira etapa.

Tradicionalmente, um dos primeiros passos é a elaboração ou atualização da matriz de risco: faz-se um mapeamento das atividades da empresa, dos agentes envolvidos, dos riscos a ela inerentes, da probabilidade de sua ocorrência, e do impacto caso haja alguma prática lesiva.

Sem essa análise, o compliance deixa de ser efetivo desde sua concepção. Mas, mesmo com ela, há espaço para melhorias.

A matriz é, em regra, formal; uma espécie de checklist de, por exemplo, interações com agentes públicos, situação em que há risco de corrupção. Ela deixa de considerar as características individuais e coletivas daqueles que exercerão a função, focando nos problemas inerentes à atividade em si.

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A ciência comportamental entra justamente aí: mais do que conhecer os riscos da área, é importante conhecer quem nela atua, sua cultura, suas escolhas, suas identificações. Os colaboradores estão muito mais ligados aos seus colegas de mesa do que ao CEO da companhia. E é importante saber disso para avaliar os reais riscos, os riscos mais concretos.

E como fazê-lo? De diversos modos: realizando auditorias de subculturas, avaliando os possíveis pontos cegos éticos, pedindo para que os próprios colaboradores listem dilemas éticos, analisando as potenciais racionalizações e os vieses.

Mas o que são pontos cegos éticos?

Os pontos cegos ocorrem quando um problema ético é enxergado não como tal, mas como uma questão de outra natureza, por exemplo como uma discussão empresarial.

Existem dois casos reais que ilustram bem esse ponto.

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O primeiro que pode ser citado é o caso de uma fabricante de automóveis, ocorrido nos anos 1970: o tanque de combustível do carro podia se incendiar quando o veículo sofria uma colisão traseira, causando ferimentos e morte. Apesar de diversos executivos e funcionários saberem do problema, ele foi tratado como uma questão meramente de negócios, de custo-benefício - quanto custaria corrigir o problema e quais seriam os benefícios que isso traria -, e não uma decisão ética.

O segundo, e mais recente - do final dos anos 2010 -, é o caso de uma empresa de desenvolvimento aeroespacial: uma falha no desenvolvimento de um software do avião, de conhecimento da fabricante, levou à queda de duas aeronaves, causando 346 mortes.

Nas empresas, esses pontos cegos éticos devem ser analisados em cada departamento na hora de se fazer a matriz de risco. As chances de cada colaborador da área comercial, da área de compras e da área de contratações enfrentarem os mesmos riscos de cair em um ponto cego ético são baixas. Não basta saber que existe um risco, por exemplo, de corrupção ou de fraude em compras, é preciso verificar se as pessoas estão enxergando isso como uma questão negocial, e não ética.

E qual o efeito disso? Como demonstram alguns estudos, é mais fácil fazer com que as pessoas deixem de praticar condutas lesivas se perceberem o problema como ético. Isso diminui o risco para a empresa, e ao mesmo tempo aumenta a efetividade dos programas de integridade.

Outro ponto que deve ser considerado na elaboração ou revisão da matriz de risco são as racionalizações que podem surgir para justificar desvios. Racionalizações são "manobras psicológicas que têm como função dissolver esse conflito [entre a ação desonesta e as crenças pessoais] e proteger a autoimagem. O resultado é que as pessoas utilizam esses mecanismos o tempo todo para justificar seus desvios e não se sentirem incomodadas com isso"[ii].

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Na prática, pense no seguinte: usar o celular ao volante é proibido, certo? Quando cometemos essa infração, sempre justificamos para nós mesmos o porquê naquele momento não era algo errado, seja porque poderia ser uma emergência, porque o trânsito estava lento, porque precisávamos resolver algo do trabalho, ou porque não concordamos com a regra.

Vimos, no passado, executivos justificarem participação em carteis e em esquemas de corrupção como sendo uma prática de mercado, não sendo possível ficar de fora.

Alguns colaboradores do setor de compras podem justificar para si mesmos uma fraude ao dizer que só estavam querendo ajudar um parente, que é fornecedor. Já empregados da área de vendas podem dizer que só lançaram uma nota fiscal, cancelada no exercício seguinte, para baterem uma meta e não perderem o emprego.

Mas em que essa questão auxilia na eficácia do programa de compliance? Simples: cada ser humano racionaliza de uma forma própria, buscando voltar ao chamado estado de consonância cognitiva, em que o ato praticado coincide com a ideia de honestidade, de cumprimento da lei[iii]. Essa racionalização é baseada nas crenças, experiências, e motivações individuais. Mas isso também está relacionado ao ambiente em que a pessoa está, em suas relações pessoais, e na cultura do local. Lembram que mencionamos que o colega de mesa influencia muito mais que o CEO?

Ou seja, trabalhando essas racionalizações, é possível identificar riscos muitos mais latentes, que podem ser combatidos nas outras fases de implementação ou revisão do programa de integridade. Mas, para fazer isso, é preciso primeiro identificá-los.

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Por fim, há ainda a questão dos vieses, também abordados e estudados pela ciência comportamental.

Para resumir, vieses são inclinações que temos em relação a diversos assuntos. Eles podem assumir diversas formas, como por exemplo preconceitos, a tendência a absorver apenas informações que são benéficas ou que estão fisicamente ou historicamente mais próximas[iv], e a disposição a levar em consideração apenas o resultado, e não o processo.

Como no caso de pontos cegos éticos e das racionalizações, os vieses atingem cada um de forma particular, individual. Apesar disso, a proximidade - seja física, de crenças, de histórico pessoal - pode fazer com que isso se torne uma questão coletiva.

Os vieses não são combatidos na análise de risco, mas identificá-los possibilita, como no caso das racionalizações, trabalhá-los em outras etapas - em especial nos treinamentos e na elaboração das políticas que compõem o programa de compliance.

Analisar apenas o risco da área de forma rígida não garante, portanto, maior efetividade. É preciso analisar a disposição física do espaço de trabalho, o histórico de ocorrências de determinada prática, tanto na área, quanto na empresa e, também, no setor em que a companhia atua, além das punições que foram aplicadas e sobre as quais as pessoas têm conhecimento. É necessário entender as relações interpessoais, as crenças e o histórico de cada integrante da empresa, ainda que de forma macro, identificando os riscos atrelados. E só depois disso é possível para as etapas seguintes, como elaboração dos códigos e políticas e aplicação de treinamentos. Esses temas, porém, são assuntos para outros artigos.

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Não se pode mais falar em compliance sem se falar em ciência comportamental. É preciso evoluir.

[i] A vez da ciência comportamental nas empresas. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-vez-da-ciencia-comportamental-nas-empresas-16042022>. Acesso em 10/02/2023.

[ii] Cabral, Gabriel. et. al. Muitos. Como as Ciências Comportamentais podem tornar os programas de Compliance Anticorrupção mais efetivos? São Paulo: Editora Brasileira, 2021, p. 34.

[iii] Usando o que foi ilustrado, a pessoa que dirige ao celular volta ao estado de consonância cognitiva ao justificar, para si mesmo, que poderia ser uma emergência ou que o trânsito está lento: ela sabe que é proibido, mas encontrou uma justificativa que elimina esse conflito interno entre o que é certo - a lei de trânsito - e a violação.

[iv] Um exemplo clássico do viés de proximidade no contexto histórico é o fato de muito mais pessoas acharem seguro viajar de avião quando o último acidente de que ouviram falar ocorreu há algum tempo do que quando ele aconteceu na semana anterior.

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*Victor Ferreira Arichiello, advogado do Pimentel e Fonti Advogados, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especializado em Compliance pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas

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