Há décadas se discutem os efeitos da acumulação de gases na atmosfera, decorrente da atividade humana, com capacidade de absorver os raios infravermelhos e refleti-los em todas as direções, promovendo assim o aquecimento do planeta, especialmente o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4). Durante muito tempo, houve um grupo minoritário de cientistas que defendia que o aquecimento observado era decorrente de ciclos geológicos a que o planeta sempre esteve submetido, nada tendo que ver com a atividade humana.
Até recentemente, os graves efeitos previstos desse aquecimento eram percebidos pela maioria das pessoas como algo distante, como algo que a humanidade, como toda a sua capacidade de engenho, seria capaz de evitar antes que efetivamente acontecesse. Os militantes da pauta ambientalista eram tidos por muitos como alarmistas e profetas do caos.
Hoje já não há dúvidas de que o aquecimento atual tem causas antrópicas e de que seus efeitos já não são previsões, mas se fazem sentir em todas as partes do mundo. Os últimos três anos foram os três anos mais quentes da história desde o início da revolução industrial, tendo sido atingido o marco de 1,5 grau celsius de aquecimento na temperatura média do planeta, algo que se estimava que só ocorreria em 2030. Janeiro de 2025 foi o mês mais quente já registrado, com temperatura média 1,75 grau celsius mais elevada que a do período pré-industrial.
No mundo todo, enchentes, secas prolongadas, ondas de calor e frio extremos tem sido observados. O gelo da Groenlândia e do Ártico tem diminuído anos após ano. A temperatura dos oceanos está mais elevada. A dinâmica do sistema climático global já foi alterada, o que afeta até mesmo nossa capacidade de prever como se dará o ritmo das mudanças futuras. Estamos lidando com um nível maior de risco e de incerteza. O fato de termos atingido marcas de aquecimento antes do período previsto pode ser indicador de que, ao contrário de alarmistas, os cientistas podem ter sido otimistas em suas projeções e talvez tenham subestimado os impactos de cada grau de aquecimento.
As consequências dessa alteração global são gravíssimas. No Brasil, além da enchente sem precedentes que vivenciamos no Rio Grande do Sul há menos de um ano, já se observam períodos prolongados de seca em certas partes da Amazônia, com o volume de água do rio Negro descendo a níveis críticos. A redução do período chuvoso da Amazônia aponta para a degradação da floresta e sua transformação em cerrado. Para tal redução concorrem decisivamente o desmatamento e as queimadas, já que a maior parte das chuvas que caem sobre a floresta amazônica é produto da umidade por ela mesma produzida por meio da transpiração de suas árvores.
A savanização da Amazônia terá impactos nos demais biomas brasileiros, como o Pantanal e o Cerrado, que dependem dos “rios voadores” de umidade que se originam na floresta. Essas regiões poderão se tornar semi-áridas e o semi-árido poderá se tornar deserto.
Essas mudanças em escala global trazem impactos imensos para a vida humana, colocando em risco a sobrevivência de populações inteiras tanto por escassez hídrica como de alimentos. A safra de soja 2023/2024 no Mato Grosso teve quebra de 21% em razão de falta de chuvas. Já se anteveem ondas migratórias de refugiados climáticos de magnitude superior a 1 bilhão de habitantes.
Nesse cenário de inédito desafio para o planeta, avulta a importância da atuação governamental coordenada de todos os países, com todas as dificuldades que isso naturalmente oferece em termos de estabelecimento de lideranças, custos e sacrifícios. Os países em desenvolvimento e os mais atrasados argumentam que o aquecimento global foi e é majoritariamente causado pelos países ricos, com elevados padrões de consumo, devendo a eles tocar o custo maior das iniciativas de combate às mudanças climáticas. Os países mais pobres defendem também seu direito ao próprio desenvolvimento, reclamando um suposto direito a continuar poluindo até que também estejam desenvolvidos. A questão é saber se há tempo ou se haverá planeta para isso.
Ao assumir a presidência da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (INTOSAI, na sua sigla em inglês), o Brasil, por meio do Tribunal de Contas da União, então presidido pelo Ministro Bruno Dantas, levou àquela organização a ideia de implementar uma ferramenta que pudesse mapear, identificando e quantificando, as ações dos governos nacionais para combater as mudanças climáticas e/ou mitigar seus efeitos. A ferramenta, batizada de Climate Scanner, foi amplamente debatida e desenvolvida com a participação de auditores de entidades fiscalizadoras de todo o mundo.
Com essa ferramenta, pretende-se prover os cidadãos de todo o mundo, assim como seus governos, de informações atualizadas sobre o que tem sido feito por cada país, o quanto tem sido gasto nessas inciativas, que resultados têm sido obtidos, quais os próximos passos, permitindo uma visão global, mas também analítica, para dar suporte ao complexo processo de tomada de decisão que o planeta todo já está enfrentando diante deste que pode ser considerado o maior desafio que a humanidade já enfrentou.
Já neste ano, o novo presidente do TCU, Ministro Vital do Rêgo, além de dar continuidade ao trabalho já desenvolvido, abriu uma nova etapa do Climate Scanner, com a integração dos tribunais de contas estaduais e dos municípios, com seus respectivos ministérios públicos de contas, replicando, no âmbito nacional, aquilo que a ferramenta já alcançou em nível global. Assim, esses organismos locais de controle, atuando de forma integrada com o TCU, produzirão um quadro geral de informações sobre as ações dos governos estaduais e municipais para combate às mudanças climáticas, assim como mitigação de seus efeitos e adaptação às novas realidades.
Ao atuar dessa forma, o controle externo brasileiro oferece uma contribuição indelével para toda a humanidade, evidenciando como é possível somar esforços, expertises e expectativas de variados matizes, de diversas tradições culturais, em prol da sustentabilidade, quiçá da sobrevivência da espécie humana em nosso planeta. Somente a atuação coordenada de todos os países poderá fazer face ao enorme desafio do aquecimento global. Sem dúvida alguma, o Climate Scanner é exemplo de coordenação que pode ser o ponto de partida para iniciativas ainda mais abrangentes e impactantes.
O Climate Scanner é exemplo também de como o controle externo da administração pode ser indutor de progressos significativos nos campos para os quais direciona seu olhar. Para muito além de julgar contas e sancionar gestores que podem ter cometido irregularidades, o controle externo avulta sua importância ao lançar um olhar técnico sobre áreas importantes da atuação governamental e identificar falhas e lacunas que podem ser superadas mediante recomendações aos gestores responsáveis.
Embora haja tantas notícias ruins sobre as mudanças climáticas nos atingindo todos os dias, iniciativas como essa do TCU à frente da INTOSAI, com o Climate Scanner, tanto em sua versão global, como a voltada para âmbito nacional, nos nutrem de esperança de que as instituições e os governos dos diversos países do mundo, atuando de forma irmanada, talvez possam impedir a derrocada de nosso planeta como nosso abençoado habitat. Que possamos ter mais iniciativas como esta!
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica