O Congresso Nacional está travando diversos debates envolvendo saúde pública, que não se restringem à CPI da Covid. Uma das mais acaloradas discussões envolve o Substitutivo do Projeto de Lei 399/2015, que trata da regulamentação do uso de derivados da Cannabis para fins terapêuticos em pessoas e animais, bem como da produção do cânhamo industrial.
O que se assiste no âmbito da Comissão Especial do PL 399 são debates que estão em patamares ainda muito distantes daqueles travados nas nações mais desenvolvidas. Oposição vs governo, cloroquina vs cannabis, esquerda vs direita, ideias vs empurrão...
Como se sabe, existe na ONU a Comissão de Narcóticos (CND, em inglês), incumbida de monitorar a implementação de convenções internacionais de controle de drogas e de atuar nas áreas conectadas com as finalidades dessas convenções, bem como incluir substâncias nas listas de controle internacional de entorpecentes.
A CND deliberou, na 63ª sessão, ocorrida em 2 de dezembro passado, excluir a Cannabis e a resina de Cannabis da Tabela IV da Convenção de Entorpecentes de 1961, atualizada pelo Protocolo de 1972.
As substâncias constantes dessa Tabela IV ficam sujeitas à seguinte previsão, nos termos da Convenção: "Uma Parte deverá, se em sua opinião as condições prevalecentes em seu país torná-lo o meio mais apropriado de proteger a saúde pública e bem-estar, proibir a produção, fabricação, exportação e importação, comércio, posse ou uso de qualquer droga, exceto em quantidades que possam ser necessárias apenas para pesquisas médicas e científicas, incluindo ensaios clínicos que sejam conduzido sob ou sujeito à supervisão e controle direto da Parte".
Tal condição não impediu que os países-membros da ONU, mesmo antes da deliberação da 63ª sessão da CND, aos poucos e mais recentemente, emitissem leis e regulamentos que permitissem a pesquisa da Cannabis para fins terapêuticos ou mesmo a produção de remédios à base de Cannabis. Mesmo no Brasil, estão permitidas a fabricação, comercialização, importação e prescrição de produtos à base de Cannabis (a respeito vejam-se as RDCs 327 e 335 da ANVISA).
Mas quem acompanha de perto os desafios da instalação de um setor farmacêutico que tenha Cannabis como IFA (insumo farmacêutico ativo), sabe o peso que tem o fato de se lidar com substâncias listadas em convenção internacional de combate a entorpecentes.
Mesmo na ONU, o assunto demandou muito debate e reflexão para se chegar à decisão da 63ª sessão da CND. A deliberação decorreu de recomendações feitas pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em janeiro de 2019 e foram necessários dois anos para que os países-membros estudassem o assunto para definir suas posições. E a votação foi apertada (27 a favor, 25 contra e uma abstenção).
O Brasil se posicionou contra a retirada da Cannabis da Lista IV. Mas como bem colocado por Hindemburgo Chateaubriand Filho, Subprocurador-Geral da República e Secretário de Cooperação Internacional (Memorando Circular nº 1/2021 - REL/SCI/PGR): "...o posicionamento brasileiro divergiu daquele sustentado pelas principais democracias do mundo. A decisão histórica da CND em acatar a Recomendação 5.1 da OMS teve grande repercussão e poderá impactar legislações e os sistemas de justiça ao redor de mundo."
Um outro aspecto que constava da proposta da Organização Mundial de Saúde discutido no CND foi a possibilidade de incluir na Convenção uma nota esclarecendo que o CBD (canabidiol - um dos princípios ativos da Cannabis Sativa) não seria um narcótico e, logo, não sujeito ao controle da Convenção.
Como sabemos, o CBD não possui uma natureza psicoativa pelo que a sua inclusão enquanto substância controlada na Convenção não é evidente. O controle do CBD resulta mais da sua origem na planta de Cannabis do que das suas propriedades psicotrópicas, que são inexistentes.
Por outro lado, há ainda a questão da obtenção do CBD a partir da flor de cânhamo a qual possui um teor de THC inferior a 0.2% e não deveria ser sujeita a controle internacional pelo baixo potencial psicoativo.
O CBD, embora sem propriedades psicoativas, possui elevado potencial medicinal, designadamente pelos efeitos calmantes e anti-inflamatórios, tal como tem sido descrito pela investigação científica mais recente.
Não obstante tudo isso, a proposta foi rejeitada no CND. As razões para a recusa foram as mais diversas, desde países que entendem que não se dever abrir aqui uma exceção, até aos que parecem deixar subentendido que o CBD já não se encontra sujeito ao controle internacional.
Mais recentemente foram alargados vários catálogos europeus para permitir a inclusão de CBD em cosméticos, o que no Brasil poderá ter marco legal com a aprovação do PL 399.
Todo este universo jurídico está em profunda mutação e são esperadas grandes novidades legislativas e regulatórias quanto ao uso da Cannabis medicinal e do CBD na Europa nos próximos meses.
No Brasil, é desejado que a troca de ideias sobre o tema suba alguns degraus no processo de evolução qualitativa. Afinal, evoluir constantemente faz parte da saga da espécie humana, que há alguns milhares de anos utiliza essa planta para fins medicinais.
*Alessandra Nascimento S. F. Mourão, professora da Escola de Direito SP da FGV e sócia-fundadora da Nascimento e Mourão Advogados (São Paulo)
*Gonçalo Saraiva Matias, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e sócio da Saraiva Matias & Associados (Lisboa)
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