O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza o Poder Judiciário, determinou abertura de um processo administrativo disciplinar contra o desembargador Sebastião de Moraes Filho, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, e manteve seu afastamento cautelar até a conclusão do procedimento. A portaria de Barroso foi preparada após decisão unânime do CNJ.
O desembargador é suspeito de vender decisões judiciais e também da prática de nepotismo que teria favorecido sua mulher e o filho, que é advogado. A defesa, a cargo da advogada Mariana Albuquerque Rabelo, nega que ele tenha cometido irregularidades.
Moraes Filho está afastado das funções desde outubro de 2024, por ordem do CNJ. Ele pode ser aposentado compulsoriamente se for condenado no processo administrativo. A aposentadoria com remuneração proporcional ao tempo de serviço é a “punição” mais severa a juízes, conforme a Lei Orgânica da Magistratura (Loman).
Sebastião de Moraes Filho também é investigado na esfera criminal.
No Conselho Nacional de Justiça, o desembargador vai responder por suspeita de violar os deveres de independência, imparcialidade, integridade, prudência, dignidade, honra e decoro, previstos no Código de Ética da Magistratura e na Lei Orgânica.
O ministro Mauro Campbell, corregedor do CNJ, defendeu a instauração do processo por “relevantes indícios de desvio de conduta e afronta a deveres funcionais”. A investigação aponta estreita ligação de Moraes Filho com o advogado Roberto Zampieri, executado a tiros em dezembro de 2023 na porta de seu escritório, em Cuiabá.

Em relatório de 84 páginas, o corregedor destaca ”indícios contundentes do recebimento de vantagem indevida para a prolação de decisões judiciais com desvio funcional, amizade íntima e indevida ingerência de advogado (Zampieri) na atividade jurisdicional do magistrado (Moraes Filho)”.
Campbell aponta existência de “elementos de convicção que, em cotejo com as informações obtidas no aparelho celular da vítima de homicídio, Roberto Zampieri, indicaram a possível prática dos crimes de corrupção passiva e da lavagem de dinheiro na modalidade dissimulação, por parte do requerido (Moraes Filho), indícios concretos de nepotismo cruzado, a partir do emprego de seus parentes em seu próprio gabinete, malgrado estivessem formalmente lotados nos gabinetes de outros desembargadores”.
O relatório cita, no capítulo nepotismo, os desembargadores Dirceu dos Santos e Carlos Alberto Alves da Rocha. A mulher de Moraes Filho, Marlene Prado de Moraes, e o filho do casal, Márcio Thadeu Prado de Moraes, advogado, foram empregados no Tribunal de Justiça.
Ao defender “apuração detalhada” das suspeitas no âmbito de um Processo Administrativo Disciplinar, o corregedor aponta para a “gravidade dos fatos, que maculam a confiança pública no sistema judiciário”.
Conversas encontradas no celular do advogado Roberto Zampieri colocaram o desembargador na mira do CNJ. Eles trocaram 768 mensagens entre 14 de junho de 2023 e 5 de dezembro de 2023 - uma média de 4,5 mensagens por dia.
Os diálogos revelam uma relação próxima, com conversas sobre futebol e viagens, além de acesso livre ao gabinete do desembargador. Também indicam a ingerência do advogado no trabalho do magistrado e o pagamento de propinas em troca de decisões favoráveis aos clientes de Zampieri.
Propinas
“A razão do acesso privilegiado de Zampieri ao desembargador Sebastião, assim como da profunda ingerência daquele na atividade jurisdicional deste, decorreu do efetivo pagamento de vantagens indevidas, reiteradamente realizado, seja em favor do desembargador seja em favor de familiares seus”, apontou o ministro Mauro Campbell. “São vários e vários diálogos a expor essa relação indevida.”
Para o ministro, o advogado vendia a terceiros a influência que tinha, ou dizia que tinha, sobre o desembargador Sebastião de Moraes Filho, cobrando em contrapartida valores da parte beneficiada a título de honorários e “muito possivelmente repassava parte substancial deles” ao magistrado. “O vínculo entre ambos não tinha mesmo propósitos republicanos”, acrescentou o ministro ao defender a instauração do processo.
Em uma das conversas, o advogado diz que “o Pix está errado, estornou o valor”. “Tente mandar o Pix correto que faço agora”, emenda. Cinco dias depois, afirma que “o pagto da sobrinha foi feito”, junta um comprovante da transferência no valor de R$ 10 mil e pede o adiamento de um julgamento.
Em outro diálogo, Zampieri afirma ter conseguido “um contrato muito bom para o Mauro”. E continua: “O senhor vai ficar feliz com o contrato que consegui para ele”. Mauro, segundo o CNJ, é o advogado Mauro Thadeu Prado de Moraes, filho do desembargador.
Roberto Zampieri também envia ao magistrado uma imagem de duas barras de ouro, que segundo ele tinham 400 gramas, o equivalente a cerca de R$ 500 mil, e teriam sido usadas para o pagamento de propinas.
Os diálogos revelam pedidos insistentes do advogado para que o desembargador votasse de determinada forma, não participasse de sessões, pedisse vista de processos ou não pautasse ações, tudo para atender a seus interesses processuais.

O relatório da Corregedoria do CNJ resume temas abordados nos diálogos entre Roberto Zampieri e o desembargador:
“Conversas banais e amenas entre o reclamado (Moraes Filho) e o advogado, como comentários sobre futebol, piadas sobre política e mensagens de autoajuda com frases motivacionais.”
“Compartilhamento da rotina do desembargador com o advogado, como ida a sessões de pilates, RPG, salão de beleza, troca de fotos de viagens de férias.”
“Atualização sobre os locais por onde o desembargador passava; afirmação do advogado de que estava com saudades do desembargador, durante viagem do magistrado.”
“Encaminhamento de notícias sobre inquérito em curso no STJ que estaria investigando magistrados de Mato Grosso por suspeita de venda de decisões, o que denota não apenas proximidade, mas sugere que o vínculo entre ambos não tinha mesmo propósitos republicanos.”
“Tratativas sobre processos que seriam julgados no Tribunal, com defesa de teses jurídicas pelo advogado diretamente por aplicativo de mensagens, e não pelas vias convencionais de manifestação.”
“Acesso livre do advogado ao gabinete e à casa do desembargador, inclusive em horários não convencionais.”
“Comentários sobre a exceção de suspeição oposta pelo suposto mandante do homicídio contra Roberto Zampieri, e afirmação, pelo desembargador, de que ‘querem nos comprometer’, ‘dizem que tem gravação de imagem de vc lá em casa’ e ‘dizem que vão me F’.”
“Última mensagem enviada pelo reclamado (desembargador) para o celular do advogado, já depois do homicídio, com as condolências próprias do momento.”
Ainda segundo o relatório do ministro-corregedor Mauro Campbell, foram identificados “elementos indicativos da indevida ingerência do advogado Roberto Zampieri na atividade jurisdicional do desembargador Sebastião de Moraes Filho”.
“Pedidos insistentes, por aplicativo de mensagens, para que o magistrado votasse de determinada forma, o que acabou ocorrendo em diversos processos patrocinados, formal ou informalmente, pelo advogado Roberto Zampieri.”
“Pedidos para que o desembargador não participasse de determinada sessão, para atender a interesse processual do advogado, o que de fato ocorreu.”
“Pedido para que o reclamado (Moraes Filho), aparentemente como presidente do colegiado, não pautasse certo processo no dia apontado pelo advogado, o que, de fato, ocorreu.”
“Pedido para que o desembargador, na condição de vogal, pedisse vista de autos, caso a relatora votasse contra a parte patrocinada por Zampieri.”
“Determinação para que o desembargador recebesse em seu gabinete funcionária do escritório do advogado.”
“Tratativas sobre processos que seriam julgados no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, com defesa de teses jurídicas pelo advogado diretamente por aplicativo de mensagens, e não pelas vias convencionais de manifestação, o que desequilibrava a relação processual subjacente.”
O relatório transcreve diálogos entre o advogado e o desembargador. Um deles ocorreu em 14 de junho de 2023. Trataram do processo 1016096-27.2022.8.11.0000 (embargos de declaração cível).
Zampieri: Esse caso, estou pelo embargante. Trata de uma decisão que se não for suspensa agora, pelo menos em sede de liminar, depois aguarda o mérito para ver se tem ou não fundamento. Isso para evitar o levantamento de uma quantia alta de dinheiro.
Zampieri: Desembargador, isso é apenas para evitar o risco de uma lesão grave. Por favor, veja se tem possibilidade para atender esse pedido. Obrigado.
Desembargador Moraes Filho: Analisarei. Em embargos, difícil.
No dia seguinte, 15 de junho de 2023, Zampieri insiste no pedido referente ao recurso, sugerindo uma data para que o desembargador o analisasse.
Zampieri: Aqueles EDs que conversei com o senhor, teria a possibilidade de analisar até amanhã? O pessoal está desesperado, pois saiu a ordem para levantar o dinheiro. Muito obrigado.
Segundo o corregedor, em consulta ao sistema de processo judicial eletrônico do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, verificou-se que, de fato, os embargos de declaração opostos nos autos n. 1016096-27.2022.8.11.0000 foram acolhidos para “(...) suspender a liberação de valores depositados em juízo referente à arrematação de imóvel - execução de título extrajudicial”.
A advogada Mariana Albuquerque Rabelo, que representa Sebastião no processo disciplinar, afirma que as “mensagens de cunho cotidiano são uma parte ínfima do rol de diálogos” entre o desembargador e o advogado. Também nega que eles mantivessem uma relação de amizade íntima e argumenta que a Lei Orgânica da Magistratura não proíbe magistrados de manterem conversas informais com advogados.
Segundo a advogada, as mensagens, em sua maioria, “configuram em realidade verdadeiros despachos por WhatsApp”. “O causídico enviava um memorial, fazia uma breve explanação do caso que estava defendendo e fazia o seu requerimento. Outras vezes fazia pedidos de audiência junto ao magistrado. E essa, bem ou mal, nos parece que foi uma prática adotada por diversos outros magistrados, principalmente após o contexto da pandemia.”
A defesa também alega que não há provas de pagamentos indevidos ao desembargador e afirma que, em “várias decisões”, ele se posicionou contra os interesses dos clientes de Roberto Zampieri.
O desembargador também vai responder por suspeita de nepotismo. A esposa dele, Marlene Prado de Moraes, e o filho, Marcio Thadeu Prado de Moraes, foram empregados no Tribunal de Justiça.