O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirma ter encontrado irregularidades na homologação e na gestão dos acordos de colaboração e de leniência fechados na Operação Lava Jato.
Uma auditoria no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4) e na 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, berço da operação, aponta uma ‘gestão caótica’ no controle das multas negociadas com delatores e empresas.
Juízes e desembargadores estão em silêncio porque não tiveram acesso à integra da correição. Procurado, o TRF4 informou que não vai se manifestar.
A inspeção do CNJ também retoma uma polêmica antiga da Lava Jato: a proposta de criação de uma fundação que seria gerida com recursos oriundos de uma multa de R$ 2,5 bilhões paga pela Petrobrás em ação nos Estados Unidos. A força-tarefa desistiu do projeto após a repercussão negativa.
O CNJ afirma que magistrados e membros da força-tarefa teriam agido em ‘conluio’ para destinar as multas dos acordos de delação e leniência aos cofres da Petrobrás porque sabiam que o dinheiro seria usado pela estatal para pagar a multa no exterior e que parte desses recursos voltaria para o projeto da ‘Fundação Lava Jato’.
“Verificou-se a existência de um possível conluio envolvendo os diversos operadores do sistema de justiça, no sentido de destinar valores e recursos no Brasil, para permitir que a Petrobrás pagasse acordos no exterior que retornariam para interesse exclusivo da força-tarefa”, diz um trecho do relatório da inspeção.
A auditoria também afirma que os acordos de delação e leniência eram homologados sem informações sobre as ‘circunstâncias’ ou documentos envolvendo as negociações.
Veja quem foi ouvido na investigação do CNJ:
- Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava Jato em Curitiba;
- Eduardo Appio, juiz afastado da 13.ª Vara de Curitiba;
- Gabriela Hardt, juíza que substituiu Sérgio Moro na Lava Jato;
- Carlos Thompson Flores, Marcelo Malucelli e Loraci Flores de Lima, desembargadores do TRF4;
- Advogados;
- Servidores.
O relatório final do CNJ ainda está em produção, mas uma versão provisória, com as primeiras impressões de quem participou das visitas a Curitiba ao longo dos últimos dois meses, circula entre os conselheiros.
“O principal ponto do trabalho consistiu na identificação de ações e omissões que indicariam um agir destituído quanto ao zelo exigido dos magistrados nos processos”, diz um trecho do documento ao qual o Estadão teve acesso.
A equipe do ministro Luís Felipe Salomão, corregedor nacional do CNJ, lidera a auditoria e já negocia com o Ministério da Justiça a criação de um grupo de trabalho para aprofundar a investigação e ampliar regras sobre acordos de delação e leniência. A ideia é convidar também representantes da Advocacia Geral da União (AGU), Controladoria Geral da União (CGU), Ministério Público Federal (MPF), Tribunal de Contas da União (TCU), Polícia Federal e Receita Federal.
O senador e ex-juiz Sergio Moro, que comandou as ações da Lava Jato no auge da operação, disse nas redes sociais que as conclusões da correição são ‘mera opinião preliminar’ da Corregedoria do CNJ. “Os acordos homologados em Curitiba seguiram o padrão dos acordos homologados no STF”, afirmou. Moro acrescentou ainda que ‘nada concreto’ foi encontrado, ‘salvo divergências de opinião e especulações sem base’.
O deputado cassado Deltan Dallagnol, que foi coordenador da força-tarefa da procuradores da Lava Jato em Curitiba, também reagiu e acusou o corregedor do CNJ de tentar ‘forçar a barra para criar ou reforçar narrativas’ “Nós não podemos ter um país em que os ventos políticos de vingança soprem dentro das instituições judiciais”, afirmou nas redes.
Brigas e reviravoltas levaram corregedor a Curitiba
A sucessão de atritos envolvendo novos e antigos protagonistas da Operação Lava Jato levaram o ministro Luis Felipe Salomão a Curitiba. O histórico de brigas e reviravoltas é extenso. Depois que a força-tarefa foi extinta e os antigos protagonistas migraram para a vida política, o juiz Eduardo Fernando Appio, crítico declarado dos métodos da operação, assumiu os processos remanescentes na 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba.
Ele passou a movimentar ações esquecidas na gaveta e a expor denúncias de abusos lançadas por alvos da operação, como o operador Rodrigo Tacla Duran, que afirma ter sido alvo de uma tentativa de extorsão, e o grampo ilegal instalado na cela do doleiro Alberto Youssef.
Cercado por polêmicas e alvo de pesados ataques de expoentes da Lava Jato, Eduardo Appio foi afastado do cargo após ser acusado de tentar, ele mesmo, investigar informalmente o desembargador Marcelo Malucelli, do TRF4. O desembargador é pai do advogado João Malucelli, que namora a filha do senador Sergio Moro e é sócio do ex-juiz.
No final das contas, Appio não caiu sozinho. O elo exposto do desembargador com Moro aumentou a pressão para que Marcelo Malucell se declarasse impedido para julgar processos da Lava Jato e ele acabou cedendo.
Quem assumiu temporariamente as ações penais da operação em Curitiba foi uma antiga conhecida da Lava Jato: a juíza Gabriela Hardt. Ele já havia substituído Moro quando o então juiz decidiu deixar a carreira para ser ministro da Justiça no governo Bolsonaro. A magistrada, no entanto, pediu transferência e foi substituída em meio ao pente-fino.
COM A PALAVRA, O TRF4
“O TRF4 não irá se manifestar.”
COM A PALAVRA, SERGIO MORO
“Em 60 dias de correição da 13.ª Vara Federal pela Corregedoria Nacional de Justiça, nenhum desvio de recurso foi identificado, conforme sempre afirmei. Observo que o relatório que sugere ‘possíveis irregularidades’ é mera opinião preliminar da Corregedoria do CNJ sem base em fatos. Chama a atenção a opinião da Corregedoria de que os valores depositados em Juízo não deveriam ser devolvidos à Petrobras antes do trânsito em julgado. Observa-se que idêntico procedimento foi adotado nos acordos diretamente homologados pelo STF, como o de Nestor Cerveró, Paulo Roberto Costa e outros, em que valores foram destinados à Petrobrás por decisão do ministro Teori Zavascki, sem esperar o trânsito em julgado. Aliás, os acordos homologados em Curitiba seguiram o padrão dos acordos homologados no STF. O próprio Corregedor Nacional de Justiça homologou, então na condição de Ministro do STJ, pelo menos um acordo de colaboração, com Frank Geyer Abubakir, então investigado pela Lava Jato, com cláusulas e condições semelhantes e sobre elas nunca se apontaram qualquer irregularidade. Quanto aos acordos de leniência, foram eles, antes da homologação, sempre aprovados previamente pela 5.ª Câmara de Revisão do MPF que atua junto ao Procurador Geral de República. No que se refere às alegações sobre a criação de fundação para gerir valores de acordo entre a Petrobrás e o DOJ/SEC dos Estados Unidos, o que não se concretizou, trata-se de fato posterior a minha saída da 13.ª Vara Federal. Repudia-se o emprego da expressão ‘gestão caótica’ que não faz justiça à operação que recuperou mais de seis bilhões de reais para a Petrobras, fato sem precedente na história. Respeita-se o CNJ, mas lamenta-se que, após 60 dias de correição, nada concreto, salvo divergências de opinião e especulações sem base tenham sido produzidas.”
COM A PALAVRA, DELTAN DALLAGNOL
“Já que o ministro Salomão do CNJ afirmou que seu relatório sobre o procedimento ‘sigiloso’ busca dar “transparência” (e não na verdade ganhar pontos com Lula na indicação para uma vaga no STF antes que seja tarde demais), convido o ministro para um debate aberto e transparente, público, e que de minha parte será absolutamente respeitoso, sobre todos os pontos do seu relatório. Será uma oportunidade relevante para informar a sociedade sobre os questionamentos especulativos lançados no relatório, sem base em evidências, que apontariam “possíveis irregularidades”. Seria importante que o ministro esclarecesse, nesse ínterim, em quais outros casos sigilosos ele também buscou dar a mesma ‘transparência’, quais as regras legais foram violadas por quais fatos comprovados, ou então que desde logo reconhecesse que não há nada para além de uma intenção revisionista de, por meio de interpretações alternativas de regras legais, forçar a barra para criar ou reforçar narrativas de que haveria irregularidades. Um exemplo claro disso foi apontar como ‘irregularidade’ a destinação de recursos para as entidades lesadas depois de acordo, antes de trânsito em julgado, quando isso é o que foi feito pelo STF, nas outras operações em que houve acordos e diariamente quando há transações penais e suspensões condicionais de processos em todo Brasil. É possível uma interpretação diferente da prática consolidada que sempre foi pública? Sim, é, contudo, então que faça uma regra nacional, ou apure a conduta de milhares de agentes de todo país, em todas as varas, em vez de dizer que haveria algo irregular na Lava Jato. O ‘timing’ desse revisionismo de fatos públicos e notórios também é algo que deve ser questionado, em nome da transparência. Da mesma forma, é exemplo do revisionismo a alegação especulativa e conspiratória de que haveria um suposto ‘conluio’ ou ‘triangulação’ envolvendo dezenas de agentes públicos de diferentes instituições, em torno do acordo de assunção de compromissos entre Ministério Público e Petrobras, que foi avaliado por nada menos do que nove órgãos e entidades como plenamente regular, da Justiça e do Ministério Público, incluindo grupo de trabalho com autoridades especializadas no assunto, autoras de textos e livros sobre a matéria. Nós não podemos ter um país em que os ventos políticos de vingança soprem dentro das instituições judiciais, do contrário, nossa Justiça representará o valor da justiça apenas no seu nome. Da mesma forma, incentivo a imprensa a ser crítica sobre esse assunto e buscar todas as informações disponíveis sobre o assunto, inclusive o relatório com mais de centena de páginas do grupo de trabalho em acordos de leniência da Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal.”
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