Recentemente, o Department of Justice do governo norte-americano (DoJ) requereu informações da Saab North America sobre a compra dos caças Gripen pelo governo brasileiro em 2014. Este fato desencadeou uma série de declarações políticas inflamadas.
O Presidente Lula expressou sua revolta, criticando a intromissão norte-americana, enquanto a oposição pediu a reabertura de investigações. Em comunicado oficial, a Saab disse que “tanto as autoridades brasileiras quanto as suecas investigaram partes do processo de compra dos caças brasileiros” e que “estas investigações teriam sido encerradas sem indicar qualquer irregularidade pela Saab”.
Poucos sabem que a legislação norte-americana de combate à corrupção se originou de uma situação concreta ocorrida nos anos 1970, envolvendo exatamente a venda de aviões militares. À época, a Securities and Exchange Commission (SEC), órgão equivalente à Comissão de Valores Mobiliários, lançou uma série de investigações, que resultaram na descoberta de pagamentos de propinas para agentes públicos estrangeiros. Mais de 400 multinacionais norte-americanas admitiram ter feito pagamentos questionáveis equivalentes a cerca de US$ 1,2 bilhão.
Em particular, os casos da Northrop e da Lockheed Martins chamaram atenção por se referirem à indústria de defesa aeroespacial. Foram revelados pagamentos a agentes públicos de governos aliados do Japão, Alemanha Ocidental, Itália, Grécia, Holanda e Arábia Saudita. Naquela época, estes pagamentos não eram corrupção nos Estados Unidos, pois somente se proibia a corrupção doméstica. Diante do escândalo, os Estados Unidos aprovaram o Foreign Corrupt Practice Act (FCPA) que proibia o pagamento de propinas para agentes públicos estrangeiros. Daí em diante, uma verdadeira revolução ocorreu na área anticorrupção e muitos países adotaram legislações similares, inclusive o Brasil.
Mesmo assim, existe uma percepção em várias nações de que os militares seriam menos corruptos, pois agiriam com virtudes patrióticas. Ademais, diante da sobrevivência do próprio Estado, eles adotariam sempre as melhores decisões para o bem comum e deixariam de lado os interesses pessoais. Todavia, quaisquer que sejam as razões desta percepção, os fatos não parecem corroborá-la.
Um dos alegados motivos do colapso dos exércitos de Chiang Kai-shek na China no fim dos anos 1940 teria sido uma suposta falta de interesse norte-americano em ajudá-los com material militar por conta da corrupção. Havia estórias, talvez fruto de propaganda, de que equipamentos doados pelos norte-americanos acabavam nas mãos dos comunistas que teriam subornado oficiais nacionalistas. Ironicamente, o fim de 2023 viu muitos altos oficiais chineses expurgados de sua posição por corrupção – faziam “vista grossa” à entrega de material de segunda linha.
Alguns podem acreditar que, sob pressão, a corrupção no meio militar deixaria de existir. Assim, num passe de mágica, com a invasão russa, as compras de materiais bélicos da Ucrânia deixaram de ser permeadas de corrupção associada àquele país. Em janeiro de 2024, o governo ucraniano anunciou ter desbaratado um esquema de corrupção para a compra de munição que teria custado cerca de US$ 40 milhões. O governo russo se apressou em apontar a natureza corrupta de Kiev.
De qualquer forma, as compras de materiais militares contêm características que a tornam mais vulneráveis para a corrupção. Aqui residem os problemas.
As compras de materiais bélicos são feitas por militares que são agentes públicos apesar de sua função distinta. Como visto, diferentemente da crença de alguns, não existe nada que associe os militares a uma menor vulnerabilidade para os vícios humanos – por esse motivo, eles são tão propensos à corrupção quanto a média da população na qual estão inseridos. Considerando o contexto brasileiro, o leitor poderá formar sua opinião a respeito deste primeiro fator.
Além disso, via de regra, um comprador sempre quer ter acesso ao maior número de ofertas, quer seja pela questão do preço, quer seja pela questão da qualidade. Em boa parte dos procedimentos, isso é obtido por meio de uma requisição de compras amplamente divulgada, nas quais os requisitos básicos desejados são expostos. Contudo, nas compras militares, boa parte do que se adquire tem caráter sigiloso. Se o inimigo conhece quanta munição ou mísseis um país possui, pode se preparar melhor para uma eventual invasão. Da mesma forma, saber detalhes técnicos e capacidades de armamentos constitui uma vantagem. Por isso, todo as compras militares estão envolvidas em sigilo, associado como elemento da segurança nacional.
A questão se torna mais complexa ainda quando a decisão envolve alguma discricionaridade na escolha. Para ficar no caso da compra dos caças brasileiros, havia a possibilidade de se adquirir caças com uma ou duas turbinas – além do preço maior, os caças com duas turbinas teriam um custo de manutenção maior. Por outro lado, parece que duas turbinas envolvem uma certa vantagem no campo de batalha.
Em princípio, ambas as escolhas podem ser justificadas como corretas. Logo, as investigações devem incluir outros aspectos, tais como o processo de decisão dos quesitos técnicos e a justificação da tomada de decisões.
Consequentemente, o escopo das investigações poderá ser expandido, o que pode gerar choques diplomáticos. Ao se analisar o contexto geopolítico atual, esta situação se torna mais delicada e complexa.
A solicitação do DoJ sobre os caças Gripen alerta para a vulnerabilidade das aquisições militares à corrupção. Sigilo e decisões subjetivas tornam o setor propenso a riscos éticos, desafiando a ideia de incorruptibilidade militar. Reforçar compliance e transparência é essencial para proteger a integridade e segurança nacional em tempos de tensão global.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica
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