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Opinião|Corrupto é você!

Dizer que fulano ou beltrano é corrupto, ou que tal ou qual ente público é corrupto, implica admitir ser esta uma via de mão dupla, pois, se determinada pessoa ou instituição pública (portanto, política) é corrupta, significa que o “interesse” e/ou “espírito” ora expresso por tal pessoa ou instituição emana justamente da sociedade. Corruptos e corruptores, afinal, não pairam no ar

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convidado
Por Clayton Romano
Atualização:

Quando pensamos em corrupção no Brasil, invariavelmente o estado é nossa primeira imagem. Operação corriqueira e complexa, porque se nos parece tão comum associar a noção de corrupção a dada pessoa ou instituição pública, tampouco se trata de algo simples materializar aquilo que é uma ideia, um princípio e, em tese, abstrato por definição. Para Hegel, estado é o “espírito ético enquanto vontade substancial” de determinada sociedade.

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Sociedade, segundo Hegel, composta de indivíduos em busca de liberdade, que, para tanto, constituem o estado enquanto manifestação consciente de sua vontade. Uma vez coletiva, a busca consciente por liberdade concebe então o estado, esse “espírito ético” que “realiza o que sabe e na medida em que sabe”. Trocando em miúdos, conforme Hegel, cabe à sociedade informar os termos mais sinceros da ética a ser posta em prática pelo estado.

Marx, por sua vez, distingue “reino da necessidade” e “reino do interesse”, isto é, a partir das contradições colhidas durante a luta para efetivar suas necessidades materiais de existência, a sociedade, distribuída em classes reunidas segundo interesses que visam sua existência material como classe social, faz do estado sua agência política. O “espírito ético” visto em Hegel trata-se, em Marx, de “interesse de classe” materializado no e pelo estado.

Hegel e Marx, contudo, apontam por vias próprias para o estado enquanto obra da sociedade, criação e expressão dela. Síntese capturada por Gramsci em sua célebre noção de “estado ampliado”, representação ético-política da sociedade civil organizada, palco de disputa entre grupos sociais dirigentes e subalternos por posições e exercício de hegemonia. Antes monolítico, o estado efetiva-se, em Gramsci, sob forma de “sociedade política”.

Quanto mais complexas as relações efetivadas por dada sociedade civil, tão mais dinâmicas, dialéticas, são as relações estabelecidas com a sociedade política correspondente. Para Gramsci, ao converter “interesse de classe” em “espírito ético”, o estado afirma-se ele mesmo uma sociedade com fins políticos, logo “sociedade política”, dedicada a organizar e dirigir a vida coletiva em comunidade, seja ela local, regional, nacional ou internacional.

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Dizer que fulano ou beltrano é corrupto, ou que tal ou qual ente público é corrupto, implica admitir ser esta uma via de mão dupla, pois se determinada pessoa ou instituição pública (portanto, política) é corrupta, significa que o “interesse” e/ou “espírito” ora expresso por tal pessoa ou instituição emana justamente da sociedade, que, em boa medida, oferece vazão e legitimidade à tais ações. Corruptos e corruptores, afinal, não pairam no ar.

Se o estado no Brasil traz consigo a marca da corrupção, associação imediata quando pensamos no tema, é porque a sociedade brasileira assim o fez e, pior, assim o sustenta. Sim, a sociedade brasileira não é una, indivisível, sendo ao contrário múltipla, diversa, atestando a complexidade de suas relações civis e políticas. A chaga da corrupção no Brasil, entretanto, não é exclusividade de classe ou grupo, espalhando-se por todo o tecido social.

Se todo político é corrupto, se todo partido é corrupto, se todo funcionário público é corrupto, se todo órgão público é corrupto, enfim, se o estado todo é corrupto, a sociedade, em seus diferentes níveis e nichos, toda ela também é corrupta. A recíproca é igualmente verdadeira: se nem todo político, partido, funcionário ou órgão público são corruptos, consequentemente nem toda a sociedade é corrupta ou cúmplice de corrupção.

O caso brasileiro, a meio-caminho, expõe suas contradições ao estimular generalizações de cunho antiestatal como sinônimo de anticorrupção, como se o estado, a política, a coisa pública fossem corpos estranhos, alheios e impermeáveis aos influxos sociais, demandas de indivíduos coletivamente dispostos numa mesma sociedade. Dual, maniqueísta, a tal estratagema cabe emular cizânia entre bem (sociedade, privado) e mal (estado, público).

Instalam-se então tribunais de inquisição, desmesuradamente amplificados em tempos de vida online, full time, patrocinados por turbas animadas a imolar quem não seja tido por “cidadão de bem”, Sempre movido por interesses privados, muitos deles inconfessáveis à luz do dia, nosso “cidadão de bem” empenha-se em sua cruzada anticorrupção de modo seletivo, tornando alvo pessoas, grupos, partidos, instituições que ameacem sua existência.

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Sua praxis não visa propriamente garantir qualquer êxito da boa luta anticorrupção. Realiza-se, no mais das vezes, ao simplesmente valer-se de suposto combate a atos de corrupção para impor a pecha de corrupto ao outro, sem definir nitidamente os critérios mobilizados para tanto. Camaleônico, o “cidadão de bem” escandaliza-se diante de feitos “espúrios” do oponente e simultaneamente crê ser legítimo fraudar seu imposto de renda, por exemplo.

Seu princípio ético-político surge, enfim, consagrado em fórmula única cabalmente proclamada em forma de veredito e com dedo em riste: “corrupto é você!”.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Clayton Romano
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp-Franca) e docente vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Foto: Inac/Divulgação
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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