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Opinião|Criança não é mãe, estuprador não é pai, Bíblia não é Constituição

Cuida-se de projeto inusitado que busca punir a vítima de um estupro, inclusive no caso de adolescentes, permitindo a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não para proteger, mas para responsabilizar quem já está dilacerada pela agressão sexual e por uma gravidez em terna idade. Eis situação chocante, desumana e imoral

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convidado
Por Evânio Moura
Atualização:

O país assistiu atônito e com merecida revolta ao recente debate provocado pelo trâmite errático do Projeto de Lei nº. 1904/2024 que objetiva inserir parágrafos nos arts. 124, 125, 126 e 128 do Código Penal, dispositivos que tipificam o crime de aborto em suas três modalidades (autoaborto, aborto com consentimento e abordo sem consentimento), ganhando especial destaque o afastamento das excludentes de ilicitude do art. 128 que aborda as hipóteses do aborto necessário ou terapêutico e do aborto humanitário ou ético.

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Desde a redação originária do Código Penal de 1940 o aborto é tipificado como crime, cuidando-se de um dos ilícitos de maior cifra oculta da criminalidade, entendendo-se como cifra oculta ou negra (“dark number” ou “ciffre noir”) segundo a moderna criminologia, à porcentagem de crimes efetivamente praticados e não solucionados ou punidos.

O maior exemplo disso é que os crimes de aborto (arts. 124 a 127, CP) devem ser julgados pelo Tribunal do Júri, sendo raríssimas as sessões do plenário do júri realizadas com referido propósito, demonstrando que por questões morais, religiosas, sociais, culturais, etc., nossa sociedade não tem coragem de efetivamente descriminalizar referida conduta e também não pune, hipocritamente fingindo que o problema não existe.

Cuida-se de tema espinhoso, polêmico e que admite várias interpretações ou desdobramentos éticos, notadamente quando analisado com seriedade de propósitos e base científica.

Infelizmente não é o que está acontecendo no parlamento brasileiro que optou por tratar a matéria de forma sorrateira, sem qualquer debate prévio, omitindo-se das discussões próprias de uma casa parlamentar, deixando de ouvir especialistas, cientistas e profissionais que diretamente trabalham com o assunto.

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O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) na surdina apresentou o PL 1904/24, buscando incluir dispositivos no Código Penal para afastar as três causas excludentes de ilicitude do aborto: i. quando praticado para salvar a vida da gestante; ii. nas hipóteses de anencefalia fetal; iii. quando a gravidez for resultante de estupro.

O malfadado PL 1904 estabelece para o aborto a mesma pena do homicídio simples (reclusão de 6 a 20 anos), sendo o dobro da pena fixada para o crime de estupro (art. 213, CP), responsabilizando a mulher e o médico, acaso a gravidez tenha ultrapassado 22 semanas.

Cuida-se de projeto inusitado que busca punir a vítima de um estupro, inclusive no caso de adolescentes, permitindo a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, não para proteger, mas para responsabilizar quem já está dilacerada pela agressão sexual e por uma gravidez em terna idade.

Eis situação chocante, desumana e imoral.

Referido projeto teve um pedido de urgência submetido ao plenário da Câmara dos Deputados e, em inacreditáveis 24 segundos sua tramitação é aprovada em caráter de urgência, sem qualquer questionamento, tanto dos parlamentares que integram partidos de apoio ao governo, como dos deputados de oposição (autores do projeto) e do centrão (maioria dos membros do Congresso Nacional).

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Ninguém estava disposto a debater o tema, chegando um dos líderes partidários ao ápice da banalidade, a afirmar para a imprensa que o projeto não é importante para o governo (fico a questionar o que seria importante para o governo?).

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Referida situação gerou justificável revolta da população que foi às redes e às ruas exigir respeito, contando a insubmissão popular com ampla repercussão na mídia que noticiou o inconformismo com um projeto medieval que busca punir à vítima, violentar novamente a mulher que foi estuprada, não protegendo crianças e adolescentes.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no ano de 2023 foram apurados aproximadamente 75 mil estupros, deste número um total de 56.820 são estupros de vulneráveis (vítima menor de 18 anos ou incapaz), sendo que 68% dessas agressões sexuais foram praticados na residência da vítima e em 64% dos casos os agressores são seus familiares – pai, padrasto, avô, tio, etc.

Essa a triste realidade do Brasil. Somos um país que não respeita crianças e adolescentes, que desampara vítimas de violência sexual, que abandona meninas na puberdade à sua própria sorte. Quando uma criança ou adolescente é estuprada e a gravidez chega até 22 semanas, na verdade falhou a família, o estado, o sistema de saúde, enfim, todos os organismos sociais falharam miseravelmente, não sendo possível, justo, ético e adequado punir a vítima desse abandono.

Soa como escárnio, demonstra uma face cruel e absolutamente desumana, levantar bandeira em nome de uma pretensa defesa da vida, buscando proibir o aborto (já autorizado por lei desde 1940, repise-se), encarcerando a vítima do estupro com o dobro da pena destinada ao estuprador.

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Imprescindível enfatizar os aspectos tenebrosos de um projeto de lei fundamentalista, grotesco, cruel e desproporcional que agride a um só tempo a Constituição Federal, os Tratados e Convenções Internacionais que o Brasil é signatário, além de várias leis vigentes.

O PL 1904 ofende os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), da máxima proteção da criança e adolescente (art. 227, CF), humanidade das penas (art. 5º, XLVII, CF), a vedação à tortura e a todo tratamento cruel, desumano ou degradante (art. 5º, III, CF) e a razoabilidade e proporcionalidade que deve nortear a escolha de bens jurídicos penais e a fixação abstrata das penas.

Cuida-se, ainda, de projeto inconvencional, considerando que fere frontalmente a Convenção contra a tortura e outros tratamentos degradantes, a Convenção de proteção à criança, Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Decreto nº. 592/92) e a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (Decreto nº. 678/92).

Por fim, tem-se um projeto defendido com o uso de uma fundamentação religiosa (muitas vezes partindo de uma interpretação equivocada de preceitos ou passagens bíblicas) teimando em esquecer que vivemos em um estado laico (art. 19, I, CF) e valendo-se da hipocrisia como argumento, contribuindo ainda mais para aumentar o enorme fosso social em que vivemos, tentando criminalizar mulheres pobres e desinformadas, levando-as à clandestinidade.

Eis o resultado desse malfadado projeto que a pretexto de uma suposta preocupação com a vida aflorou o que de pior existe no parlamento brasileiro. Felizmente a sociedade rapidamente organizou-se e disse um sonoro NÃO ao fundamentalismo.

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Vivemos uma inusitada quadra histórica em que é preciso lutar para que direitos positivados na lei desde 1940 não sejam suprimidos. Que coisa estranha em pleno 2024 ser necessário enfatizar que “Criança não é mãe. Estuprador não é pai. Gravidez forçada fruto de violência sexual é tortura. E bíblia não é Constituição”.

É preciso urgentemente humanizar a política brasileira, atualizar o debate, impedir o retrocesso civilizatório. Devemos lembrar do ensinamento do grande escritor russo Tolstói ao afirmar que “Se você sente dor, você está vivo Se você sente a dor das outras pessoas, você é um ser humano”.

Lutemos por mais fraternidade e empatia na política e na sociedade brasileira.

Convidado deste artigo

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Evânio Moura
Doutor em Direito Penal e mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho. Advogado. Procurador do Estado de Sergipe. Foto: Arquivo pessoal
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