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Opinião | Crime de dano, a estátua da Justiça e o batom

A razoabilidade deve ser sempre o norte de toda interpretação, deixando de lado a ideologia e sentimentos outros, como a raiva e orgulho, que ensejarão interpretações equivocadas, o que, não raras vezes, ao invés da justiça, faz-se justamente o contrário, levando ao descrédito daqueles que realizaram o julgamento e do próprio Poder Judiciário

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convidado
Por César Dario Mariano da Silva
Atualização:

A condenação a penas altíssimas da cabeleira Débora Rodrigues Santos, que somam 14 anos de reclusão, além do pagamento de multa no montante aproximado de R$ 50.000,00 e o valor astronômico de indenização no importe de R$ 30.000.000,00 por danos morais coletivos em solidariedade com os demais condenados, por ter pichado a estátua da Justiça defronte ao prédio do Supremo Tribunal Federal, repercutiu em todo território nacional e é talvez o assunto mais comentado nas redes sociais.

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É certo que não foi apenas pelo crime de dano que Débora foi condenada, mas também pelos delitos de abolição violenta do estado democrático, golpe de estado e associação criminosa armada, delitos estes que já comentei recentemente em outro artigo (link ao final do texto).

Neste artigo comentarei apenas os crimes de dano qualificado e o contra patrimônio especialmente protegido, crimes estes cujas penas são bem menores, mas agregam na sua dosimetria.

Não vou ingressar no mérito de ser, ou não, o STF o foro competente para julgar pessoas sem prerrogativa de foro, que, de acordo com nosso sistema constitucional, deveriam ser julgadas normalmente por um juiz de primeiro grau, com direito a diversos recursos, o que já não ocorre quando se é julgado ordinariamente na última instância. E nem se as penas foram proporcionais às condutas praticadas e se houve a necessária individualização das condutas nas denúncias ofertadas pelo Ministério Público Federal, a fim de que fosse preservada a ampla defesa e o devido processo legal, princípios fundamentais de nossa Carta Constitucional.

Como já dito, Débora, uma simples cabeleireira do interior do Estado de São Paulo e mãe de duas crianças, além dos crimes mais graves, foi também condenada pelos delitos de dano qualificado e contra bem especialmente protegido. Um delito é previsto no Código Penal (art. 163, incisos I, II e III) e outro na Lei do Meio Ambiente (art. 62, inciso I).

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Tanto em um crime quanto em outro as condutas típicas são: destruir, inutilizar ou deteriorar um bem material.

No que tange ao Código Penal, o objeto material é um bem público de patrimônio da União. No que é pertinente à Lei do Meio Ambiente, um bem especialmente protegido por algum ato normativo.

As condutas teriam sido cometidas com emprego de violência ou grave ameaça e com substância inflamável ou explosiva, o que, juntamente com o fato de o patrimônio ser público, agravam as penas do crime de dano.

Vamos analisar cada uma dessas condutas, lembrando que foi ela condenada também por ter aderido à conduta dos demais participantes dos atos, mesmo sem saber o que ocorria no interior dos prédios ou nas ruas, posto que o demonstrado é que ficou naquele local pichando a estátua da Justiça com um batom, isto é, com responsabilidade penal objetiva, vez que para ser condenada por outros delitos ou majorantes deles há necessidade de que tenha conhecimento e a eles adira, seja os ajustando, combinando, planejando, instigando, induzindo, mandando ou auxiliando secundariamente os autores principais, como quando lhes fornece armas, condução, dinheiro, apoio material etc., ou seja, concorrendo de qualquer forma para a prática delitiva, nos exatos termos do artigo 29, “caput”, do Código Penal.

São três os verbos do tipo. Destruir, que tem o significado de eliminar, desfazer, demolir, desmanchar (exemplos: quebrar um vidro, matar um animal ou arrebentar uma porta). Inutilizar, que significa tornar imprestável, sem utilidade, mesmo que em parte (exemplos: tirar os ponteiros de um relógio ou o fone de um telefone público). Deteriorar, quer dizer estragar, arruinar, adulterar (exemplos: misturar solvente na gasolina, água no vinho ou quebrar as patas de um animal).

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Nas três condutas típicas há danificação do objeto material. Todavia, na destruição, a coisa deixa de existir em sua individualidade; na inutilização, a coisa perde a finalidade a que se destinava; e na deterioração, embora a coisa possa ser utilizada, parte de sua utilidade específica fica prejudicada.

A coisa danificada deve ser alheia (elemento normativo do tipo) e há necessidade de que haja diminuição de seu valor ou utilidade.

Entende-se, do mesmo modo, que dano de pequena monta é crime de bagatela, fato atípico (não há crime), aplicado o princípio da insignificância, visto que não há lesão ao objeto material ou jurídico protegido pela norma penal.

Vejam que não sou que afirmo isso, mas a doutrina e a jurisprudência.

Então, como a estátua foi pichada com batom, substância plena e facilmente lavável com água e sabão sem maiores problemas, há como se falar em crime de dano?

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Suponhamos que a resposta seja positiva. Neste caso, pode ocorrer que os autores principais pratiquem um crime mais grave do que o pretendido por outro participante, ensejando o que a doutrina denomina de desvio subjetivo entre os participantes (art. 29, § 2º, do CP). Na hipótese, o outro participante responderá pelo crime pretendido e os executores pelos crimes mais graves ocorridos. Se o resultado mais grave fosse previsível para o outro participante (culpa em sentido estrito), a pena pelo delito que lhe foi imputado será aumentada até a metade.

Trazendo para o caso concreto. Se a intenção de Débora fosse apenas de protestar contra o Supremo Tribunal Federal e as Instituições em geral, descontente com o resultado das eleições e por violações a direitos fundamentais, e, para tanto, tenha pichado a estátua da Justiça com o batom, responderá apenas pelo crime pretendido de dano contra patrimônio especialmente protegido.

Porém, os demais participantes progrediram nos delitos e passaram a praticar atos mais graves (vandalismo ou contra o estado democrático de direito, a depender da visão do intérprete), com os quais Débora não aderiu. Neste caso, Débora responderá pelo crime de dano contra patrimônio especialmente protegido, ao passo que os demais pelos crimes efetivamente cometidos. Se o resultado mais grave fosse previsível para Débora, sua pena pelo crime de dano contra patrimônio especialmente protegido seria aumentada até a metade.

Outra questão.

Débora foi condenada por dois crimes de dano que incidem sobre o mesmo objeto material (estátua da Justiça). Como o objeto material foi violado apenas uma vez com a sua deterioração (caso se entenda que ocorreu), não poderia ser condenada ao mesmo tempo por dano qualificado e por dano contra patrimônio especialmente protegido. Há dupla punição pelo mesmo fato, caracterizando bis in idem punitivo, inadmissível no direito penal de acordo com a doutrina e jurisprudência pacíficas. Seria o caso, então, de apenas uma punição pelo delito mais grave (dano contra bem especialmente protegido), aumentando-se a pena-base na primeira fase da dosimetria como circunstância judicial desfavorável (art. 59 do CP) em razão da maior culpabilidade do autor do crime.

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Anoto que, a rigor, pichar a estátua da Justiça com um batom, não havendo sua deterioração, inutilização ou destruição (danificação), seria o delito de pichação, previsto no artigo 65, § 1º, da Lei do Meio Ambiente, qualificado por ter como objeto material monumento ou bem tombado em virtude de seu valor artístico ou histórico, cuja pena é de seis meses a um ano de detenção, além da multa, infração essa de pequeno potencial ofensivo, passível de transação penal ou suspensão condicional do processo (caso haja o oferecimento da denúncia), cuja pena, no caso de condenação, dificilmente seria de prisão, exceto em casos excepcionais, como de pessoa reincidente.

O direito penal é uma ciência humana dogmática, que pertence à classe do “dever ser” e não à do “ser”. Sendo uma ciência cultural, submete-se às leis humanas, não sendo exato como a física e a matemática.

Com isso, quero dizer que os fatos e as normas devem ser interpretados, e, não raras vezes, a exegese é totalmente diferente em um caso concreto, chegando os magistrados a conclusões diversas.

Por esse motivo, a razoabilidade deve ser sempre empregada e o norte de toda interpretação, deixando de lado a ideologia e sentimentos outros, como a raiva e orgulho, que ensejarão interpretações equivocadas, o que, não raras vezes, ao invés da justiça, faz-se justamente o contrário, levando ao descrédito daqueles que realizaram o julgamento e do próprio Poder Judiciário.

Enfim, fiz apenas uma análise técnica e tudo que escrevi consta dos meus livros publicados desde o ano de 2000 (manual de direito penal), sem me ater a aspectos ideológicos.

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Link:

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-julgamento-dos-atos-de-08012023/1977150457

Convidado deste artigo

Foto do autor César Dario Mariano da Silva
César Dario Mariano da Silvasaiba mais

César Dario Mariano da Silva
Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá. Foto: Arquivo pessoal
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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