Já em ritmo de Carnaval, maior festa nacional que anualmente revive o brocardo latino panis et circenses, como cortina anestésica às mazelas sociais do Brasil, o Governo Federal lançou o Plano Pena Justa, para “garantir dignidade da pessoa presa e enfraquecer crime organizado nos presídios”.
A iniciativa federal, que partiu da premissa do “estado de coisas inconstitucional nas prisões brasileiras” usa e abusa de expressões como “superlotação carcerária” e “seletividade penal” - que, embora aplicadas ao país que mais mata no mundo, não importam em “encarceramento em massa”, já que Brasil ocupa a 13ª posição no ranking do World Prision Brief (presos por 100 mil habitantes) e tem em sua Justiça Criminal uma verdadeira porta giratória, com apenas 2,69% de penas com regime inicial fechado, generosas frações de progressão de regime e até remição de pena pela leitura - escancara a inversão de prioridades de parte das instituições públicas nacionais, ao relegar ao completo esquecimento o estado de coisas inconstitucional do lado de fora dos estabelecimentos prisionais, sem qualquer proposição ou ação efetivas para a redução dos índices alarmantes de criminalidade, de corrupção, ou para a proteção das vítimas.
Muito embora sejam inegáveis as péssimas condições carcerárias, que devem, sim, ser saneadas, no ano de 2024 se comemorou a redução do número de mortes violentas de 46.328 para 39.722, tudo isso sem contar a cifra oculta, quando, na verdade, Têmis deveria retirar sua venda, olhar bem e usar sua espada a favor dos flagelados pelo crime organizado e pela corrupção, para começarmos a inverter o sentido das prioridades de intervenção do Estado Brasileiro.
Ao tratar do enfrentamento ao crime organizado instalado no cárcere, o referido plano, ironicamente, ao invés de ditar medidas mais rigorosas, como a transferência de lideranças para penitenciárias de segurança máxima, isolamento de faccionados, corte de regalias como sinal de televisão e de celulares, sanções disciplinares etc., preferiu ideologizar uma política pública e tratar o condenado como vitimado, para estabelecer que “é preciso dar maior proteção e agência à pessoa privada de liberdade para evitar que seja vulnerabilizada por esses grupos”.
É nessa contramão da ordem e do progresso, estampados em nossa bandeira nacional, que se perpetua a impunidade, especialmente quanto ao crime organizado e à corrupção, endêmicos e institucionalizados no Brasil, contra os quais não há nenhuma agenda ou compromisso nacional, tudo em nome da tão surrada palavra mais dita nos últimos anos: a pobre democracia.
Sem polarizações ou politizações, em nenhum país democrático e desenvolvido se valorariam como razoáveis alguns fatos exemplificativos do cotidiano da terra do samba: anulações de mais de 100 processos judiciais do maior esquema de macrocorrupção da história, incluindo condenações com confissões; réu confesso e multirreincidente, condenado em segunda instância a mais de 400 anos de reclusão, tem sua prisão preventiva substituída por prisão domiciliar, regada a banhos de piscina e dicas de filmes aos finais de semana para seus seguidores; anulações judiciais supremas monocráticas e em cascata de acordos firmados por empresas também confessas, que haviam devolvido bilhões aos cofres públicos por corrupção transnacional; deputado federal, absolvido pelo Conselho de Ética parlamentar, presidido por companheiro partidário, é indiciado pela Polícia Federal por associação criminosa, peculato e corrupção passiva, em razão da prática de “rachadinha”, é beneficiado por um acordo, obrigando-se apenas a devolver os valores desviados e a pagar uma multa, por ser o trato “necessário e suficiente para reprovação e prevenção dos crimes”; e, por fim, um traficante, reincidente, preso em flagrante com 1,3 tonelada de drogas é solto em audiência de custódia, por não representar risco à garantia da ordem pública. Que ordem? É o puro suco da impunidade brasileira, também exportada para outros países (efeitos transnacionais da corrupção), solidificado como elemento crucial para a perenização de seu círculo vicioso.
A correlação entre corrupção e violação de direitos humanos é comprovada desde a década de 1950 (MAURO, Paolo. 1955), que, aplicada ao cenário nacional, resulta na constatação de que existe, comprovadamente, um círculo vicioso, composto por miséria, necessidades sociais básicas, intervenção do Estado e corrupção (MAZIEIRO, 2023), que nos afunda em uma espiral de subdesenvolvimento humano.
Não à toa, no dia 3 de março de 2025, a Transparência Internacional (TI), que já tinha rebaixado o Brasil à 130ª posição em seu Índice de Percepção da Corrupção, com 34 pontos (pior nota e pior colocação desde o início das medições, em 2012) denunciou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA o desmonte das políticas de combate à corrupção nacionais e em outros países da América Latina, com práticas violadoras de direitos humanos. A partir desta provocação, tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos podem tomar providências concretas para responsabilizar o Estado Brasileiro por violação dos direitos humanos, em decorrência da impunidade sistêmica no enfrentamento à corrupção.
Se havia qualquer cegueira deliberada sobre a evidente impunidade brasileira, agora há uma certidão oficial, timbrada por organismo internacional, de que vivemos realmente um “estado de coisas inconstitucional de negligência no combate institucional à corrupção e ao crime organizado”, que não pode (não deve) mais prosperar.
A denúncia feita à CIDH foi um grito desesperado por socorro externo, diante da irrecorribilidade e da incapacidade oficiais internas em enfrentar o tema, o qual, por sua extrema gravidade concreta, deveria ser prioridade máxima do Estado Brasileiro!
Que esta iniciativa não redunde em letras silenciosas esquecidas no papel, porque escritas com a tinta do sofrimento das vítimas brasileiras, e que não nos entreguemos apenas a atuações exógenas e oficiais para alterar as prioridades e a realidade nacionais, a bem de nossa dignidade e dos direitos humanos de nosso povo.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica