A falência da educação convencional brasileira gerou uma legião de iletrados e desempregados. Decorar por decorar nunca levou alguém a uma vida plena, digna e sustentável. Ainda bem que, no universo medíocre em que se disfarça a ineficiência, sobrevivem iniciativas insólitas. Algo que faria o ranço do mais hermético dos conservadorismos franzir o nariz. Uma escola que ensina programação, não cobra mensalidade e não tem professor.
Existe isso? Sim. E em São Paulo. É a "École 42", uma instituição francesa que é referência em tecnologia. Sabe que aprender é uma arte que precisa de artífices nem sempre encontrados na docência tradicional.
Programação é um dos filés dentre as profissões atuais e do futuro. Num planeta em que a maior parte das ocupações conhecidas deixará brevemente de existir, é urgente abrir as portas do mundo web para o maior número de pessoas. Países como a Índia acordaram cedo para isso e hoje são exportadores de cérebros digitais.
A tecnologia não dispensa o foco prioritário no ser humano. Programar não é simplesmente digitar um código. É algo raciocinado, meditado, concebido para oferecer uma nova oportunidade a quem queira aprender. Para se entrar na "École 42", que fica em Vila Madalena, capital paulista, não há vestibular. Qualquer pessoa com mais de dezoito anos, ainda que não tenha terminado o ensino médio ou que sequer saiba o que significa programação, pode se candidatar. A seleção, durante vários dias, testa resiliência, garra, vontade de aprender. Exatamente aquelas habilidades negligenciadas pela escola convencional, que prioriza a capacidade mnemônica e deixa de lado as soft skills, exatamente o que é mais importante para sobreviver nesta era.
O mundo precisa de comunicadores, de empreendedores, de pessoas compreensivas, providas de empatia, de sensibilidade, de vontade de melhorar a vida dos outros, de aprimorar o mundo e de resolver problemas. Algum dia isso foi ensinado nos cursos fundamental, médio e universitário?
Durante a seleção dos candidatos utiliza-se jogo de memórias, trabalha-se com lógica, propõem-se aos candidatos problemas que exigem soluções e que devem ser solucionados mediante atuação conjunta. Sempre em equipe. Ninguém é capaz de resolver tudo sozinho.
Aqui, o importante é aprender. Não é pagar mensalidade, preencher planilha, lutar pelo diploma. Não. O que interessa é o resultado. Depois de dois anos, qual o proveito que você tirou deste estágio?
Os que passaram por lá já estão empregados e, mesmo antes de terminarem o ciclo bienal, são chamados para atuar no mercado. Os alunos de baixa renda ainda recebem um auxílio para poderem se dedicar, em plenitude, aos seus projetos.
A "École 42" trabalha com a diversidade real. Por isso, 40% dos alunos são de famílias vulneráveis, 40% autista, com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ou com outras neurodiversidades e 26% são não masculinos. A meta é chegar a 35% destes.
Enquanto isso, na rede estadual de ensino, assim que detectado algum espectro tendente a autismo, o aluno é sumariamente excluído e encaminhado a uma instituição especializada. Quase sempre "protegida" por alguém ligado à política profissional, para fazer pressão sobre o governo, que paga a internação. É preciso rever tudo isso, não tanto pela economia que se poderia fazer, mas pela humanidade com que se devem tratar os chamados autistas. Muita vez, bem mais inteligentes do que os considerados "normais".
A École 42 funciona durante 24 horas, os estudantes escolhem como cumprir suas 35 horas semanais. O projeto é financiado por Itaú, Vivo, Localiza, Ultra e Zup. Os mesmos responsáveis pela "École 42" querem trazer para o Brasil uma escola semelhante, mas apenas para adolescentes. A instituição "Tumo" já funciona na Armênia, também gratuitamente, atende jovens de doze a dezoito anos. Seria a melhor opção para o contraturno escolar, superior ao "integral", que ainda não oferece opções para os alunos no período vespertino.
Os brasileiros lúcidos deveriam contribuir para iniciativas análogas, pois a responsabilidade pela educação não é só o Estado. É a família e é a sociedade civil. Ou seja: ninguém está dispensado de pensar o que oferecer de melhor às novas gerações, premidas por um descompasso cruel entre o que a ciência e a tecnologia propiciam e o que a escola vigente oferece.
*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras
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