Em janeiro de 2023, o Ministério da Fazenda apresentou um pacote de medidas de recuperação fiscal para equilibrar as contas públicas do país. Dentre outros impactos, acarretou no retorno do voto de qualidade (i.e. voto duplo, em caso de empate) para o conselheiro presidente de cada turma julgadora do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o CARF.
A argumentação da Pasta apontava que o formato de empate em favor do contribuinte, previsto pelo art. 19-E da Lei 10.522/02, acrescentado em 2020, seria fonte de perda de arrecadação, acrescentando que teses favoráveis à Fazenda reconhecidas pelo Judiciário teriam sido revistas pelo CARF, o que significaria que a Fazenda teria perdido casos no conselho idênticos a disputas vencidas nos tribunais judiciais, mas sem ter a prerrogativa de recorrer a eles posteriormente. Na justificativa, citou como exemplo diversos temas que teriam sido revertidos no Conselho administrativo, pelo empate em favor do contribuinte, de forma contrária à jurisprudência judicial consolidada.
No entanto, esse pretexto, que serviu como base para a edição da Medida Provisória nº. 1.160/2023 e o retorno do voto de qualidade, não encontra respaldo jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Vale destacar o exemplo do tema "Participação nos Lucros e Resultados - PLR", que representa relevante valor de contencioso. A jurisprudência do CARF sobre esta matéria é significantemente contraditória e flutuante ao longo dos anos, tendo os recentes precedentes, mesmo em casos empate favorável ao contribuinte, apenas repetido a interpretação que o próprio CARF já havia proferido no passado, sem trazer nenhum tipo de argumento inovador.
Ainda sobre este assunto, do lado judicial, o que se verifica é que o STJ não vinha adotando o posicionamento restritivo que o Fisco buscava consolidar nos últimos anos. Pelo contrário, tem proferido precedentes, a exemplo do REsp nº. 865.469, no sentido de determinar a anulação de autuações de PLR, por entender que "a evolução legislativa da participação nos lucros ou resultados destaca-se pela necessidade de observação da livre negociação entre os empregados e a empresa para a fixação dos termos da participação nos resultados", e que "irregularidades não afetam a natureza dos pagamentos, que continuam sendo participação nos resultados: podem interferir, tão-somente, na forma de participação e no montante a ser distribuído, fatos irrelevantes para a tributação sobre a folha de salários".
O exemplo indica que, apesar de inconstante, a jurisprudência recente do CARF, com empate a favor do contribuinte, estava muito mais alinhada aos precedentes do STJ do que o Fisco estava tentando emplacar, contradizendo os argumentos a favor da volta do voto de qualidade.
Esta mesma situação é verificada no que tange à tese "Stock Options", também de valor de contencioso expressivo. A recente decisão do CARF, resultante de empate em favor do contribuinte, reconhece que não há natureza remuneratória em oferecer a oportunidade para um empregado comprar ações da empresa, mesmo que com valor pré-fixado. E esta foi justamente a interpretação das cortes judiciais no caso que levou ao REsp 1.737.555, que só não foi finalmente julgado pelo STJ, pois a Fazenda desistiu do recurso antes de sua inclusão em pauta. Ou seja, trata-se de outro caso em que a jurisprudência judicial está alinhada com o recente posicionamento do CARF.
De forma semelhante, o tema "pejotização" também serve de exemplo. Isso porque o STF, em 2020, ao julgar conjuntamente a ADPF 324 e o RE 958252 (com repercussão geral), fixou a seguinte tese jurídica: "É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante (tema 725 da repercussão geral)". Portanto, a evolução da jurisprudência do CARF, mesmo que por empate, no sentido de se aproximar dos conceitos expostos pelo STF representa justamente aos argumentos usados para justificar a medida, de que as decisões do CARF, por empate, seriam contrárias às decisões dos tribunais superiores.
Na mesma esteira de se verificar a situação de contencioso relevante, destaca-se a tese de JCP, cuja matéria está consolidada a favor do contribuinte no âmbito judicial, em linha com as recentes decisões do CARF.
Isso sem falar de outros temas citados, como classificação fiscal de mercadorias e responsabilidade a sócios e administradores de pessoas jurídicas, os quais não comprovam uma distorção entre as decisões do CARF e dos tribunais judiciais, na medida em que tais casos claramente dependem da análise de situações fáticas e provas específicas de cada processo.
Dessa forma, apesar de a criação do pacote de medidas de recuperação fiscal representar uma louvável iniciativa do governo para o necessário ajuste fiscal do país, bem como para a redução de litígios, verifica-se que o argumento utilizado pelo Ministério da Fazenda para o retorno do voto de qualidade não encontra respaldo na jurisprudência judicial. É bem possível que esta medida atinja o efeito oposto ao desejado, pois pode gerar maior insegurança jurídica, piora no cenário econômico, maior judicialização e aumento de litígios, bem como, em decorrência destes fatores, não deverá implicar em aumento efetivo de arrecadação.
*Rafael Gregorin e Paulo Roberto Gomes de Carvalho são, respectivamente, sócio e associado da área tributária de Trench Rossi Watanabe
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