O tema abordado na prova nacional do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) sob o título “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” merece os holofotes que recebeu já que transcende para a realidade dos lares de todas as famílias brasileiras e de toda a organização da sociedade.
Primeiramente, é importante estabelecer que o cuidado vai além de tarefas domésticas, mas abrange o cuidado de crianças, idosos, doentes, pessoas com necessidades especiais e o suporte emocional à família.
Cuidado é trabalho, e, portanto, é uma atividade desenvolvida e aprendida. Não é biologicamente inerente as mulheres, e não existe impedimento para que todos os gêneros sejam excelentes ao exercerem essas atividades.
Assim, é importante refletirmos o porquê é visto como prioritariamente feminino, porque não é visto como digno de remuneração e demais benefícios inerentes ao trabalho, e porque muitas vezes o “valor” da mulher é associado à sua disponibilidade e empenho em cuidar. Ou seja, o trabalho do cuidado deve ser reconhecido pela entidade família, ter a proteção do Estado e ser objeto de benefícios previdenciários e trabalhistas.
Ao invisibilizar o trabalho de cuidado e relegá-lo ao gênero feminino, as mulheres são frequentemente subjugadas e sobrecarregadas com as responsabilidades que deveriam ser de toda a família. Desde a infância, quando meninas já são ensinadas a desenvolverem essas habilidades de cuidado, enquanto aos meninos é permitido aproveitarem a infância mais livremente, como se tais habilidades não fossem imprescindíveis para seu futuro, já antevendo que haverá sempre uma mulher para suprir suas necessidades.
Esse fardo se estende por toda a vida e é agravado pela condição social, com mulheres de comunidades mais carentes frequentemente tendo que equilibrar o cuidado familiar com o trabalho remunerado, muitas vezes informal e também sem os benefícios legais.
O problema é que a sociedade muitas vezes não considera estranho que o cuidado seja uma obrigação não remunerada, como se fosse uma parte intrínseca da existência feminina.
Um aspecto a ser notado é que mesmo o trabalho remunerado da mulher não exclui ou sequer diminui a quantidade de tempo dedicado às tarefas familiares de cuidado. Isso, pois o fato de a mulher se encontrar ativa no mercado de trabalho remunerado enseja um acúmulo ainda maior de funções, de cuidados com os filhos, com a casa e demais familiares.
Essa circunstância reitera e exemplifica o quanto o trabalho e o tempo da mulher são muitas vezes vistos como “disponíveis” em favor da família, ou como de menor valor e por isso mesmo facilmente movimentado em prol do coletivo familiar. A função de cuidado da mulher, mesmo que empregada, é primordial em relação à função de ganho econômico próprio.
De acordo com o estudo Estatísticas de Gênero divulgado pelo IBGE, o trabalho não remunerado, principalmente as tarefas domésticas, é muito mais presente dentre as mulheres. Embora haja variações regionais e diferenças de nível econômico e escolaridade, a média nacional revela que as mulheres dedicam, em média, 21,4 horas por semana ao trabalho doméstico, em comparação com as 16,8 horas semanais dos homens.
E essa dedicação aos afazeres domésticos lhes retira o tempo de demais atividades. A professora da Universidade de Harvard e ganhadora do Prêmio Nobel de Economia em 2023 Claudia Goldin relata que quando um dos membros tem mais disponibilidade para dedicar-se ao trabalho ou aos próprios interesses, essa disponibilidade se dá em prejuízo do tempo e interesses do outro membro do casal e, via de regra, as normas de gênero que herdamos são reforçadas de várias maneiras para atribuir mais responsabilidade de cuidados com crianças às mães e mais cuidados familiares às filhas adultas.
Incentivar a divisão equalitária do trabalho do cuidado, e valorizar o trabalho em si são iniciativas enriquecedoras para todos os envolvidos, que poderão gerar exemplos inspiradores de mudanças e uma transformação na mentalidade familiar. Somente assim poderemos caminhar em direção a uma sociedade mais justa, onde o trabalho de cuidado seja compartilhado de forma igualitária, independentemente do gênero.
*Cláudia Abdul Ahad Securato é sócia da Securato & Abdul Ahad Advogados
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