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Opinião|Desbloqueio de bens para custear a defesa: a interpretação do art. 24-A do Estatuto da OAB

A Lei nº 14.365, de 23 de agosto de 2022, inseriu no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil o artigo 24-A, que possibilita, à pessoa que tiver a totalidade de seus bens bloqueados judicialmente, o levantamento de parte deles para o pagamento de honorários advocatícios e o reembolso de despesas da defesa

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Por José Raul Gavião de Almeida, Luiz Roberto Salles Souza e Pedro Ivo Gricoli Iokoi

No dia 6 de agosto de 2024, o escritório Iokoi e Paiva Advogados, com o apoio da Comissão de Prerrogativas da OABSP, logrou obter, junto ao Superior Tribunal de Justiça[1], a aprovação de tese jurídica que, para além de interessar a toda a Advocacia, representa um importante passo à valorização do Direito de Defesa. Trata-se da fixação de parâmetros para o desbloqueio de bens que viabiliza o pagamento de honorários advocatícios e o reembolso das despesas relativas ao exercício da Defesa[2].

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A Lei nº 14.365, de 23 de agosto de 2022, inseriu no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94) o artigo 24-A, que possibilita, à pessoa que tiver a totalidade de seus bens bloqueados judicialmente, o levantamento de parte deles para o pagamento de honorários advocatícios e o reembolso de despesas da Defesa.

Mais precisamente, dispõe o referido preceito legal[3] que, na hipótese de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, “garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa”, conquanto a causa não se relacione a crime previsto na Lei de Drogas[4] e não haja vinculação do patrimônio bloqueado ao tráfico ilícito de entorpecentes ou à exploração do trabalho escravo, nos termos do § único do artigo 243 da Constituição Federal[5].

Essa alteração legislativa, nada obstante inserida no Estatuto dos Advogados do Brasil, não buscou o favorecimento a determinada classe profissional, mas teve por escopo prestigiar o Direito de Defesa, na medida em que assegura à parte uma maior liberdade na escolha do defensor, proporcionando-lhe a tranquilidade de saber-se representado por pessoa de sua confiança.

Isto porque, uma vez bloqueada a integralidade do patrimônio do investigado, este só podia recorrer aos serviços prestados pela Defensoria Pública ou por algum advogado inscrito no convênio de assistência judiciária, uma vez que o bloqueio universal impede até o pagamento das contas mais básicas e necessárias à subsistência do investigado.

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Isto traz, sem dúvida alguma, forte impacto sobre o Direito de Defesa, haja vista que não raras vezes o bom desempenho defensivo está relacionado ao grau da confidência praticada na relação cliente-advogado, cuja missão, nas palavras de J. M. de Carvalho Santos “exige competência, dignidade, honradez e bravura moral”[6]. Não se olvide, ainda, a função pedagógica do processo[7], que será mais bem atingida quando a parte sabe que suas razões foram sustentadas por pessoa na qual confia profissionalmente.

Nada obstante a interpretação literal não esgote os esforços de compreensão da mens legis, as palavras da lei não podem ser ignoradas e, na espécie em comento, ao prever-se o desbloqueio parcial de bens para custear a defesa judicial, foi utilizada a expressão “garantir-se-á ao advogado a liberação” de valores que façam frente aos honorários e reembolsos. Portanto, no que concerne ao desbloqueio de verba para o pagamento de honorários advocatícios e reembolso de gastos defensivos, até o limite estabelecido na legislação, a norma legal não criou ato de discricionariedade ao juiz, que só poderá recusar o pleito de levantamento em hipóteses específicas e devidamente fundamentada.

Sem pretender que do magistrado seja excluído o poder de escolha na função de julgar, até porque seria inconstitucional fazê-lo atuar como mera etapa de engrenagem burocrata, a legislação vigente não lhe reservou um juízo de oportunidade e conveniência quanto à satisfação da obrigação contratual formada entre o cliente e seu advogado, quando ambos os contratantes estão concordes, tampouco “de definir o que seria ou não razoável e proporcional aos serviços prestados”[8].

A norma vigente estabelece, é certo, algumas condições para o desbloqueio de bens destinados ao pagamento dos honorários e reembolso de despesas. E o papel do magistrado é o de decidir se esses requisitos legais estão presentes para então determinar o ato que favorece o direito de defesa.

Ao magistrado preservou-se, inicialmente, verificar se o mandante e o mandatário não conflitam quanto ao valor e momento do pagamento dos honorários e reembolso de despesas com a defesa. A disputa entre o cliente e o advogado constituído não garante a este último o desbloqueio pretendido, mas imporá intervenção judicial mais aprofundada.

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Um segundo aspecto a ser apreciado pelo julgador antes de determinar o desbloqueio de bens para o fim de pagamento de honorários e despesas decorrentes do exercício do Direito de Defesa, assenta-se no montante total dos bens apreendidos, uma vez que a lei só permite o desbloqueio se este for imprescindível à satisfação dessa obrigação. Se o bloqueio foi parcial e o cliente permanece com bens livres em valor suficiente para arcar com os custos do Direito de Defesa, deles deverá retirar o montante que precisa para esta finalidade.

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Reserva-se ao magistrado, ainda, verificar se a soma dos honorários advocatícios contratados com os gastos da defesa cujo pagamento se pretende não excede a 20% do valor apreendido, pois se superar esse limite só poderá ser levantado montante até esse percentual:

A expressão ‘até 20% dos bens bloqueados’ implica em dizer que os honorários advocatícios podem ser, naturalmente, inferiores a 20% dos valores constritos, sendo que, nessa hipótese, o valor levantado há de ser integral, pois não atingido o teto legal”[9]

Incumbe ao juiz, também, assegurar-se que o pedido de levantamento não está a disfarçar manobra do investigado em conluio com seu advogado, para que o primeiro tenha acesso a parte do patrimônio bloqueado. Se constatado que o valor dos honorários contratados, somados às demais despesas com a defesa, é inferior ao pleiteado no pedido de levantamento, haverá violação aos artigos 5º (obrigatoriedade da boa-fé) e 77, inciso I (dever de dizer a verdade), do Código de Processo Civil, devendo ser deferido apenas até o limite correspondente àquela adição[10].

Igualmente reserva-se ao julgador a verificação da natureza da infração penal vinculada aos bens apreendidos, haja vista que para os crimes previstos na lei de drogas e de exploração do trabalho escravo, há expressa proibição legal de levantamento[11].

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Por último, em face do disposto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal[12] e no artigo 8º do Código de Processo Civil[13], também aplicável ao processo penal, caberia verificar se, excepcionalmente, pode o magistrado averiguar se o levantamento de até 20% do montante bloqueado, não acarreta prejuízo a terceiros. Mas, mesmo nessa hipótese, há de considerar-se a natureza alimentar dos honorários e, em especial, a preferência legal pelo Direito de Defesa.

Por se tratar de “direito subjetivo do advogado”[14], descabe ao Judiciário se imiscuir na relação entre advogado e cliente capaz, para decidir sobre a conveniência do valor dos honorários e sobre a oportunidade de seu efetivo pagamento, se quanto a isso os interessados (cliente e advogado) estão de acordo.

Aliás, é pouco saudável que o magistrado interfira em relação não contenciosa, evolvendo o advogado constituído e o cliente capaz, para fixar, à vista de seus próprios parâmetros econômicos, o valor e a forma de pagamento dos honorários e reembolsos. O Judiciário exerce uma atividade substitutiva e, fora dos casos de jurisdição voluntária expressamente previstos na lei (e o desbloqueio para as despesas com o Direito de Defesa não o está entre eles), não interfere nas relações pessoais.

Bem por isso, o Código de Processo Penal apenas permite ao magistrado a fixação de honorários ao defensor dativo[15] e o Código de Processo Civil[16] só possibilita estabelecê-los na hipótese de honorários sucumbenciais e de gratuidade processual, em que o contratante não o suporta. Mais, o artigo 676 Código Civil[17] prevê a obrigação de o mandante pagar a remuneração ajustada, e ao Judiciário, quando provocado, cabe assegurar o cumprimento desse dispositivo legal, não o papel de obstar sua aplicação.

Assim, a expressão “até 20% dos bens bloqueados”, inserida no artigo 24-A da Lei nº 8.906/94 pela Lei nº 14.365/22, deve ser interpretada em consonância com a mens legis de favorecimento ao Direito de Defesa, o que impõe relacioná-la ao limite quantitativo – “ao teto legal”[18] – alcançado com a soma dos honorários contratados e despesas cujo reembolso se pretende, nunca com a abertura de um juízo de valor e oportunidade do respectivo pagamento.

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[1] Recurso em Mandado de Segurança nº 71903 (2023/0250972-5), impetrado contra decisão não unânime da Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

[2] O entendimento sustentado vitoriosamente pelo impetrante foi, inclusive, acolhido pela segunda instância do Ministério Público estadual e pela Procuradoria da República.

[3] Lei nº 8.906/94. Art. 24-A. No caso de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal.

§ 1º O pedido de desbloqueio de bens será feito em autos apartados, que permanecerão em sigilo, mediante a apresentação do respectivo contrato.

§ 2º O desbloqueio de bens observará, preferencialmente, a ordem estabelecida no art. 835 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

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§ 3º Quando se tratar de dinheiro em espécie, de depósito ou de aplicação em instituição financeira, os valores serão transferidos diretamente para a conta do advogado ou do escritório de advocacia responsável pela defesa.

§ 4º Nos demais casos, o advogado poderá optar pela adjudicação do próprio bem ou por sua venda em hasta pública para satisfação dos honorários devidos, nos termos do art. 879 e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 5º O valor excedente deverá ser depositado em conta vinculada ao processo judicial.

[4] Lei nº 11.343/06.

[5] Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

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Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

[6] Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. 2, pág. 356, editor Borsoi, Rio de Janeiro.

[7] Dinamarco, Cândido Rangel, A instrumentalidade do processo, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1987, pp. 224 e seguintes.

[8] STJ-RMS/SP nº 71903, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, v.u., julgado em 06/8/24.

[9] STJ-RMS/SP nº 71903, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, v.u., julgado em 06/8/24.

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[10] Como decidido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, “havendo indicativos concretos da ocorrência de fraude entre as partes, ou seja, possível articulação entre o cliente e o advogado para estabelecer honorários em montante fictício, como forma de contornar o bloqueio realizado sobre os bens, o magistrado poderá, de forma fundamentada, excepcionar o regramento legal e determinar o levantamento de valor inferior ao artificialmente estipulado” (RMS/SP nº 71903, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, v.u., julgado em 06/8/24).

[11] Lei nº 8.906/94. Art. 24-A. No caso de bloqueio universal do patrimônio do cliente por decisão judicial, garantir-se-á ao advogado a liberação de até 20% (vinte por cento) dos bens bloqueados para fins de recebimento de honorários e reembolso de gastos com a defesa, ressalvadas as causas relacionadas aos crimes previstos na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas), e observado o disposto no parágrafo único do art. 243 da Constituição Federal.

Art. 243. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

[12] C.F. - Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[13] Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

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[14] Ementa: “Recurso em mandado de segurança. Bloqueio do patrimônio universal do investigado. Pleito de liberação dos honorários advocatícios. Acórdão da origem que manteve apenas a liberação parcial dos honorários. Art. 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Valor pretendido inferior a 20% do patrimônio constrito. Estágio prematuro das investigações. Não impedimento da liberação. Discricionariedade do julgador. Descabimento. Direito subjetivo do advogado, desde que não configurados indícios de fraude. Segurança concedida para determinar liberação do valor pretendido a título de honorários advocatícios” (STJ-RMS/SP nº 71903, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, v.u., julgado em 06/8/24).

[15] Art. 263. Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.

Parágrafo único. O acusado, que não for pobre, será obrigado a pagar os honorários do defensor dativo, arbitrados pelo juiz.

[16] Artigos 81, 85, 87, 90, 98, 322, 338, 485/486, 523, 526, 701 775, 827.

[17] Art. 676. É obrigado o mandante a pagar ao mandatário a remuneração ajustada e as despesas da execução do mandato, ainda que o negócio não surta o esperado efeito, salvo tendo o mandatário culpa.

[18] STJ-RMS/SP nº 71903, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, v.u., julgado em 06/8/24.

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José Raul Gavião de Almeida
Graduado em 1977 pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, com especialização em Processo Penal pelas universidades italianas de Milano (1979/1980) e Pavia (1980/1981). Mestre em Direito Processual (1986) e doutor em Direito (2000) pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da USP desde 1987 nos cursos de graduação, mestrado e doutorado. Professor, conselheiro, coordenador pedagógico e vice-diretor da Escola Paulista da Magistratura (2001/2013). Promotor de Justiça em São Paulo (1978/1983). Juiz e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (1983/2020). Foto: Arquivo pessoal
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