Essa expressão popular, muito conhecida pelo povo brasileiro, está prestes a se tornar realidade para a maior parte dos contribuintes, que correrão o risco de sofrer “calote” em relação ao recebimento de valores que fazem jus – e reconhecidos, de forma incontestável, pelo Poder Judiciário.
Conforme foi possível observarmos, os últimos anos acabaram sendo palco de importantes alterações tributárias, que objetivaram, em regra, aumentar a arrecadação fiscal, tudo para fazer frente às despesas do governo. Apenas no ano de 2023, podemos citar, por exemplo, a revogação da alíquota zero do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras, a nova tributação para fundos de investimentos e offshore, a tributação de subvenção de investimento pelo IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, dentre outras medidas.
Não fosse suficiente a majoração da carga fiscal, no “apagar das luzes” de 2023 os contribuintes foram novamente surpreendidos com alterações na legislação tributária. Contudo, dessa vez, a “artimanha” utilizada para garantir a arrecadação tributária no ano de 2024 acaba por atingir diretamente aqueles que recolheram tributo de forma indevida (inconstitucional e/ou ilegal) ao Fisco.
Trata-se da Medida Provisória nº 1.202, publicada em 28 de dezembro de 2023 (“MP nº 1.102/23), que, dentre outras medidas (como a revogação do PERSE e a desoneração parcial da folha de salários), trouxe importante alteração no art. 74, da Lei nº 9.430/96, que trata sobre a compensação de débitos e créditos tributários, assegurada pelo art. 170, do Código Tributário Nacional (”CTN”).
A compensação, que nada mais é do que uma das formas asseguradas para a extinção do crédito tributário (art. 156, II, do CTN), foi alterada de forma bastante significativa.
Em breve síntese, foi inserido o art. 74-A, na referida lei, para prever uma limitação em relação ao valor mensal que poderá ser objeto de compensação por parte do contribuinte, limite esse que deverá ser previsto por ato infralegal, ainda não expedido pelo Ministério da Fazenda.
Ou seja, a partir da alteração realizada, o contribuinte que recolheu tributo de forma indevida para o Fisco, e que tenha tido o direito de reaver esses valores devidamente reconhecido pelo Poder Judiciário por meio de decisão transitada em julgado, não poderá mais realizar a compensação dos créditos que faz jus com os débitos de sua titularidade no valor que melhor lhe convier, mas apenas dentro do limite mensal que for autorizado por ato a ser expedido pelo poder executivo.
De acordo com a mencionada Medida Provisória, tal limite apenas não será estabelecido para crédito decorrente de decisão transitada em julgado cujo valor total não ultrapasse R$ 10 milhões de reais.
O contribuinte que já realizou o pagamento indevido de determinado tributo ao Fisco e, ainda, litigou durante anos perante o Poder Judiciário (em regra, em período não inferior a 10 anos), discutindo a ilegitimidade de tal cobrança, terá que aguardar mais alguns anos para que finalmente consiga reaver, integralmente, os valores que pagou – de forma inconstitucional e/ou ilegal – ao Fisco. E tudo isso em razão dessa restrição quanto à forma de utilização do crédito que lhe foi assegurado via decisão transitada em julgado.
Ora, não se pode admitir tamanha afronta ao direito do contribuinte. Basta relembrar que se o contribuinte deixar de recolher qualquer tributo ao Fisco no prazo do seu vencimento, estará sujeito não apenas ao recolhimento do valor principal, como, também, dos juros e de multa. Contudo, ao contribuinte não é assegurado o mesmo direito: se o Fisco não devolver o valor que o contribuinte recolheu de forma indevida, ficará sujeito apenas ao pagamento do débito atualizado, sem qualquer imputação de penalidade. O Estado jamais será penalizado por não devolver ao contribuinte o valor que lhe é de direito, dentro do prazo que se mostre razoável!
E nem se diga que tal medida se justificaria pelo que dispõe o princípio da primazia do interesse público em detrimento do interesse do particular. Isso porque, o interesse público jamais poderia se sobrepor ao atropelo de direitos e garantias do contribuinte e, muito menos, em uma situação que configura nítido enriquecimento ilícito do Estado (vedado pelo art. 884, do Código Civil), que, na prática, irá manter nos cofres públicos valores que não lhe pertencem – que, por meio de determinação judicial, devem ser devolvidos ao contribuinte na modalidade compensação.
Não se pode justificar a necessidade de arrecadação tributária por meio da manutenção de valores que são, de direito, do contribuinte, devendo a Administração Pública nortear os seus atos com base no princípio da moralidade (art. 37, da CF).
Contudo, infelizmente, não é o que vem sendo observado nos últimos anos. Cada vez mais, esse princípio vem sendo desrespeitado pelos órgãos públicos, especialmente quando o contribuinte figura na posição de credor.
Não podemos esquecer que, nos últimos anos, os contribuintes já estão encontrando grande dificuldade em reaver os valores que recolheram de forma indevida perante o Fisco pela simples escolha da modalidade de ação judicial que é utilizada para o reconhecimento desse direito. Caso o contribuinte tenha ajuizado mandado de segurança para obter a declaração do seu direito creditório, é certo que, atualmente, ele somente conseguirá obter a declaração do seu direito à compensação (conforme Súmula 213 do Superior Tribunal de Justiça – “STJ”), mas não poderá mais realizar a liquidação de sentença nos próprios autos, por meio da expedição de precatório – o que, a nosso ver, já vai na contramão dos próprios princípios da celeridade, da economia processual, da própria alteração que foi realizada nos artigos 513 e seguintes do CPC/2015, bem como da Súmula STJ 461.
E o que é pior: não só não poderá mais realizar a restituição nos próprios autos, como, também, não poderá pleiteá-la perante a esfera administrativa, considerando a própria alegação utilizada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – e que vem sendo acolhida pelo Poder Judiciário – de que tal pleito violaria a própria “fila do precatório” e o art. 100, da CF.
Ou seja, a despeito de a sentença proferida em mandado de segurança ter cunho declaratório do direito ao indébito, bem como o art. 165, do CTN não fazer qualquer alusão à forma que essa restituição será realizada, o fato é que, pelas restrições que vêm sendo criadas, só resta ao contribuinte a opção de reaver os valores recolhidos indevidamente pela compensação – que, neste momento, também conta com novas restrições.
Assim, o que se tem observado é que, quando é o contribuinte que se encontra na posição de credor dos cofres públicos, todo o tipo de entrave é utilizado para assegurar que os valores pagos indevidamente não sejam devolvidos – ou, se forem, que essa restituição demore muitos anos.
O mesmo padrão restritivo é observado com o pagamento dos precatórios. A cada ano são previstas novas restrições ao pagamento de precatórios aos contribuintes, cujo direito ao recebimento também restou reconhecido pelo poder judiciário, mas que, a depender das contas públicas, acaba sendo ignorado pelos governantes.
E, neste momento, o que se observa com essa nova Medida Provisória é que, além de os contribuintes já serem onerados com a constante majoração da carga tributária, sequer poderão utilizar os créditos que possuem para compensar débitos de sua titularidade no montante que seja necessário para a sua liquidação.
Em última instância, tal medida se assemelha, e muito, ao próprio instituto do empréstimo compulsório, previsto no artigo 148, da Constituição Federal, que somente pode ser instituído pela União em situações excepcionalíssimas – para atender despesas extraordinárias de calamidade pública, de guerra ou de sua iminência ou, ainda, para suprir investimentos públicos de caráter urgente e relevante, e que sejam do interesse nacional –, o que nitidamente não é o caso da alteração realizada pela Medida Provisória nº 1.102/23.
Ainda, importante ressaltar que a regra não é clara em relação à aplicação dessa restrição para pedidos de habilitação que já estão em vigor, que tenham sido deferidos ou aguardem análise por parte da Receita Federal do Brasil ou, ainda, que serão apresentados em breve em razão de decisão judicial transitado em julgado. Neste momento, portanto, existe uma grande insegurança em relação ao próprio alcance da alteração trazida pela referida Medida Provisória.
De toda forma, mesmo não havendo clareza e certeza quanto ao exato alcance das alterações promovidas na compensação do crédito tributário, não nos surpreenderemos se a intenção dessa MP tenha sido justamente retardar a devolução dos valores reconhecidos judicialmente e com compensação em andamento.
Configurada essa situação, entendemos que, por certo, ela configuraria nítida violação aos princípios constitucionais da coisa julgada e segurança jurídica, além de ir de encontro a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de que a compensação de crédito reconhecido judicialmente deve ser regida pela legislação à época do ajuizamento da demanda judicial, e não à época do encontro de contas.
Portanto, a nosso ver, essa MP traz uma grave restrição no direito creditório só contribuinte já reconhecido judicialmente, via decisão transitada em julgado, além de possuir efeito nitidamente confiscatório, violando claramente o direito de propriedade dos contribuintes.
Se essa Medida Provisória não for rejeitada no Congresso, é certo que ela implicará em novo litígio tributário, já que não se pode admitir que a saga arrecadatória seja realizada ao atropelo de direitos fundamentais dos contribuintes.
*Marco Behrndt e Bruna Miguel são sócios da área tributária do Machado Meyer Advogados
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