Dez entidades de magistrados, defensores e advogados lançaram manifesto em que defendem a implantação imediata do 'juiz de garantias'. O modelo está sob análise do Supremo Tribunal Federal e deverá ser votado no próximo dia 9.
O juiz de garantias deverá exercer suas funções no âmbito do inquérito policial. A ele caberá manter o controle da legalidade da investigação.
"Juiz de garantias é tão juiz quanto qualquer outro", diz o documento, subscrito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Associação Juízas e Juízes para a Democracia (AJD), Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACrim) e Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), entre outros importantes grupos jurídicos.
"Dizer que a instituição da figura trará lentidão no andamento das causas é criar problema a partir de algo que não existe", avalia o criminalista Renato Stanziola Vieira, presidente do IBCCrim.
Ele destaca que 'a separação de competências se presta a otimizar os procedimentos'. "O país está perto de uma solução nada surpreendente para um velho e constrangedor problema."
As entidades alertam que 'ainda não se conseguiu alterar a espinha dorsal do Código de Processo Penal que vigora há quase 100 anos, tomando sua estrutura como sacrossanta'.
Os juristas e operadores do Direito ressaltam que 'juiz de garantias não é nova instância jurisdicional'. Eles são taxativos. "A competência admite divisões em sua extensão, o que pode se dar em razão de domicílio do réu, da consumação do crime e outros. No exercício da função jurisdicional, pode ser estabelecida em razão de fases do processo sem alterar a hierarquia de funções. Isso se vê em situações de juízes de instrução e de execução, tanto em processo cível quanto em processo penal. Seccionar a competência a depender da 'fase' ou 'estágio' processual não significa criar instância diversa."
Salientam que 'o fato de o juiz da ação penal poder rever decisões do juiz de garantias não fere a fixação de competência por fases do processo'.
"Se há decisões no mesmo grau de jurisdição que podem ser revisitadas pelo mesmo juiz, como, por exemplo, recebimento de denúncias, medidas cautelares em geral, claro que podem também o ser por outro juiz, de mesma hierarquia", observam. "Condicionar o poder de revisão de decisões a graus distintos de jurisdição é um equívoco."
O texto adverte que 'se o juiz que deve controlar a investigação não apreciar a viabilidade da ação penal, aquele que o sucederá na próxima fase processual receberá o caso sem filtro cognitivo e por isso levará em conta o arcabouço informativo no qual não foi exercido o contraditório'.
As dez entidades que endossam o manifesto enfatizam que 'o juiz da causa não pode ter conhecimento prévio do que irá julgar'.
"Não pode tocar processo já instruído com elementos de informação. Não pode, em favor da imparcialidade objetiva, presidir causa que conheça à partida."
Para Stanziola 'escolhe-se, até agora, a defesa do Código em detrimento da Constituição de 1988 e das evidências de que o sistema não anda bem'.
LEIA O MANIFESTO PELO JUIZ DE GARANTIAS
"Pelo implemento do juiz de garantias no processo penal brasileiro.
O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), a Associação Juízas e Juízes para a Democracia (AJD), a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACrim), o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Instituto de Ciências Penais (ICP), o Instituto de Garantias Penais (IGP), o Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), a ANADEP (Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos), o Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), além do partido Solidariedade, reafirmam ser favoráveis à implementação do 'juiz de garantias'. Com o estágio da discussão no julgamento das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305 no STF, as entidades insistem na urgência da instalação do instituto.
1. Juiz de garantias não é nova instância jurisdicional
A competência admite divisões em sua extensão, o que pode se dar em razão de domicílio do réu, da consumação do crime e outros. No exercício da função jurisdicional, pode ser estabelecida em razão de fases do processo sem alterar a hierarquia de funções. Isso se vê em situações de juízes de instrução e de execução, tanto em processo cível quanto em processo penal. Seccionar a competência a depender da 'fase' ou 'estágio' processual não significa criar instância diversa.
E o fato de o juiz da ação penal poder rever decisões do juiz de garantias não fere a fixação de competência por fases do processo. Se há decisões no mesmo grau de jurisdição que podem ser revisitadas pelo mesmo juiz (por exemplo: recebimento de denúncias, medidas cautelares em geral), claro que podem também o ser por outro juiz, de mesma hierarquia. Condicionar o poder de revisão de decisões a graus distintos de jurisdição é um equívoco. Aliás, as duas decisões monocráticas tomadas nas ADIs em questão não colocam os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli em jurisdições diversas.
2. Juiz de garantias trata de matéria processual
Além do sinal da Procuradoria-Geral da República e do ministro Dias Toffoli preconizando o que é sabido, repete-se que tema central à estrutura do processo penal tem característica de norma processual (art. 22, I, CF).
Não fosse assim, a consequência seria a de o processo penal brasileiro repristinar o regime anterior à Constituição de 1934, em que cada Estado da federação teria sua própria estrutura de sistema processual penal. É fácil entender a falta de lógica do raciocínio, de resto suplantado por precedentes do STF, inclusive na ADI 4414.
3. Juiz de garantias não é um modelo análogo ao "DIPO"
Tem-se difundido o entendimento desde que o debate surgiu em 2009 com o PLS 156/2009, de que o modelo de inquéritos adotado na Capital do Estado de São Paulo serviria de inspiração ao 'juiz de garantias'. Tampouco isso é correto.
Tal constatação decorre não só em razão dos critérios de inamovibilidade dos juízes no microssistema paulista, mas porque em São Paulo os juízes do DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais) não apreciam a legalidade dos oferecimentos de ações penais.
Se o juiz que deve controlar a investigação não apreciar a viabilidade da ação penal, aquele que o sucederá na próxima fase processual receberá o caso sem filtro cognitivo e por isso levará em conta o arcabouço informativo no qual não foi exercido o contraditório. Consequentemente, valorará as informações a partir do que se produziu em fase processual que não se presta a isso. Não é 'o juiz' que pode ser bom ou ruim; a estrutura é que não funciona.
E se o Código de Processo Penal brasileiro, ainda que timidamente, alinhou-se à conceituação da prova como o que é produzido em contraditório e admitiu que aquilo é que deve ser valorado na sentença (artigo 155, Código de Processo Penal), amesquinhar o controle jurisdicional do 'juiz de garantias' é, com jogo de cena, fazer letra morta da previsão legal. Tirar do juiz das garantias o controle da licitude dos elementos de informação e da viabilidade da ação penal é aniquilar a originalidade cognitiva do juiz da causa.
O que se defende - porque acúmulo de informações colhidas antes da fase de contraditório não implica decisão mais justa - é que o juiz da causa penal tome contato com os fatos que irá julgar em situação de pureza, tanto quanto possível. O juiz da causa não pode ter conhecimento prévio do que irá julgar; não pode tocar processo já instruído com elementos de informação; não pode, em favor da imparcialidade objetiva, presidir causa que conheça à partida. Por isso, pela originalidade cognitiva, o juiz das garantias deve ter a competência preservada para apreciar a viabilidade de ações penais. E é por isso que - na esteira do artigo 155 do Código de Processo Penal - os elementos de informação que não se constituírem como provas irrepetíveis, antecipadas ou cautelares devem ser excluídos dos autos. A pretensão é de criar a condição para o ineditismo cognitivo ao juiz.
4. Juiz de garantias não é 'canto da sereia'
Mesmo que não tenha sido ventilado no julgamento em curso, na jurisdição constitucional, Jon Elster tem célebre trabalho (Ulisses e as Sereias), que toca no âmago do sistema de contrapesos entre Poderes Legislativo e Judiciário. A obra estimulou abordagens a respeito de self restraint e outras, típicas de debate qualificado.
Mas a menção à mítica passagem não cabe aqui, porque não se cuida de cegar ante a tentação de desvio catastrófico, como no regresso de Ulisses a Ítaca. O sistema processual penal que privilegia a figura do juiz de garantias foi provado e funciona em países europeus há cerca de 50 anos, valendo citar Itália, Espanha, Portugal.
E em países latino-americanos, que passaram por onda reformista desde a década de 1960 do século passado, como documenta Maximo Langer, a sistemática se implementou na Colômbia, no Uruguai, no Chile, no Paraguai, no Peru e outros.
Além disso, precedentes tanto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos preconizam a estrutura processual.
5. Conclusões
É preciso ver o que está diante dos olhos: ainda não se conseguiu alterar a espinha dorsal do Código de Processo Penal que vigora há quase 100 anos, tomando sua estrutura como sacrossanta. Escolhe-se, até agora, a defesa do Código em detrimento da Constituição de 1988 e das evidências de que o sistema não anda bem. José Carlos Barbosa Moreira usaria expressão lapidar para isso: uma interpretação retrospectiva.
O remanejamento de juízes entre varas, como defendido pelo ministro Dias Toffoli em seu voto na medida liminar nas ADIs, não afronta as receitas brasileiras nem implica novos cargos públicos. O CNJ e ministros do STF, em posicionamentos publicados, mostraram-se favoráveis à medida. Ainda assim, desfiam-se argumentos pálidos como o de que haveria 'impacto financeiro' a obstaculizar a mudança. Ora, com o advento da Lei 13.964, instituíram-se patamares diversos de cumprimento de pena para progressões de regime e se aumentou a duração de execuções penais, sem questionamento dos palpáveis impactos financeiros. Soa estranho que, para prender pessoas por mais tempo, com alto custo financeiro, o empecilho não seja visto, mas para o remanejamento funcional e em prol de justiça melhor, sim.
Juiz de garantias é tão 'juiz' quanto qualquer outro. Dizer que a instituição da figura trará lentidão no andamento das causas é criar problema a partir de algo que não existe. A separação de competências se presta a otimizar os procedimentos. O país está perto de uma solução nada surpreendente para um velho e constrangedor problema."