É recorrente a celeuma sobre a retirada de barracas e outros equipamentos, mais toscos, utilizados pelos moradores de rua para ocupação do espaço público.
Sob argumento de eugenismo, alguns condenam a Prefeitura por desalojar os miseráveis. Esse é apenas um dos lados da questão e não o mais racional.
Juridicamente, não existe o direito a "morar na rua". Rua é logradouro público, bem de uso comum do povo. Não pode ser transformada em residência particular de uma só pessoa. Ou de uma só família. Simples assim.
Raciocine-se em termos de propriedade privada, um dos pilares do sistema jurídico, bem fundamental, tanto que abrigado no caput do artigo 5º da Constituição da República. Alguém que vê sua propriedade invadida por outrem, pode se defender mediante uso da força legítima. O ordenamento não quer incidir sobre uma cidadania covarde.
Se o titular que se viu invadido preferir, há todo um arsenal normativo à disposição. O sistema justiça responderá, inclusive assegurando a participação da polícia militar para que o bem retorne ao seu dono.
Agora, veja-se o quadro em relação às vias públicas. O que o cidadão, legítimo titular do direito a usufruir daquilo que é de todos e, portanto, seu também, pode fazer para não ver turbado ou impedido no gozo de seu direito? Nada?
É perfeitamente válida, portanto, a atuação da municipalidade, ao retirar barracas, armações, tudo aquilo que impede à cidadania a disposição do seu direito a transitar nos logradouros públicos.
Isso é ainda mais válido e racional, quando se constata que a Prefeitura dispõe de alternativas para abrigo provisório dessas pessoas, ou viabiliza o retorno delas para a sua origem, ou se propõe a capacitá-las para o exercício de uma profissão.
Os argumentos dos que se opõem à retirada parecem rescender humanismo, porém isso é falacioso. Espaços públicos reservados a uso privado na verdade descumprem o pacto social. Tornam o trânsito de pedestres inviável. Dão a impressão de insegurança, de abandono, de evidente descumprimento das funções da cidade. Prefeito que não toma providência quanto aos moradores de rua deveria merecer não apenas crítica, mas repúdio do Ministério Público e da cidadania. Abandonar a cidade à ocupação de quem se apropria de seus espaços para deles fazer moradia pode sugerir prevaricação.
Com razão o Prefeito da capital, Ricardo Nunes, ao escrever o artigo "Rua não é endereço, barraca não é lar". Explicitou os projetos da Prefeitura e mostrou-se sensível à situação dos que não dispõem de moradia. Tanto que prometeu encaminhamento razoável para a questão que atinge todas as cidades, mas nunca na intensidade com que as metrópoles - e, para a megametrópole paulistana, principalmente - é na verdade uma tragédia.
O risco de nada se fazer é resignar-se a uma situação de escancarada injustiça e de falência das instituições. Uma Constituição que erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana como eixo inspirador de toda administração pública, não pode exigir outra conduta de seus governantes.
As regiões centrais de todas as cidades do Primeiro Mundo merecem tratamento consentâneo com sua importância histórica, arquitetônica, artística e turística. Um centro entregue a ocupações descabidas só pode testemunhar omissão conivente da Administração Pública.
Os defensores dos que ocupam espaço público deveriam canalizar sua energia e capacidade para oferecer alternativas, ou seja, capacitar os desocupados e marginalizados para o trabalho, investir na política da moradia, um direito social incluído pelo constituinte derivado na Carta Cidadã, elaborar políticas para a revitalização das áreas centrais, hoje pouco frequentadas durante o dia e abandonadas durante a noite.
É preciso ter coragem para chamar as coisas pelo seu nome certo. Morar na rua não é digno. Nem está sob a proteção do direito. Ao contrário, aquilo que é de uso comum do povo não pode ser reservado a uso particular, ainda que se invoquem razões de um sentido humanitário equivocado, ainda que com as melhores intenções.
*José Renato Nalini é diretor-geral da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário-geral da Academia Paulista de Letras
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