Notícia divulgada ontem à tarde informa que o CNJ, o Legislativo, o Executivo e o TCU estão costurando um acordo com base no qual as despesas com precatórios para os anos de 2022 em diante serão submetidas a um teto próprio, bastante similar ao teto de gastos que rege as contas da Administração Pública.
A "solução" proposta foi de se expedir resolução do CNJ para limitar a despesas com precatórios, adotando-se o valor pago em 2016 como base, e corrigindo-o até os dias atuais pela inflação. A parcela que excedesse o tal teto seria parcelada nos exercícios subsequentes.
Antes mesmo de entrarmos no mérito da proposta, causa espanto o fato de o Conselho Nacional de Justiça estar sendo instrumentalizado para a questionável finalidade de limitar o pagamento de precatórios. Tem sido exaustivamente veiculado na imprensa o fato de que o inadimplemento de precatórios se assemelha à desobediência de ordens emanadas pelo Poder Judiciário. Impossível crer, portanto, que o CNJ, cuja competência é "zelar pela autonomia do Poder Judiciário" (art. 103-B, §4º, I, da CF/88) se preste - por meio de resolução! - a alterar regra constante da Constituição, em detrimento da independência do Judiciário.
Ainda mais surpreendente o fato de a proposta ter sido gestada sob o olhar do Ministro Luiz Fux. Em manifestação pública na data de ontem, Fux lembrou que por trás do Ministro, haveria também um cidadão brasileiro. Ora, seguindo-se essa mesma lógica, há que se concluir que, por trás do Presidente do CNJ, há também o Ministro do Supremo, que já rechaçou a limitação do pagamento de precatórios no passado, concluindo que "permitir que decisões emanadas do Poder Judiciário, já definitivamente constituídas e revestidas de exigibilidade, percam sua força executiva (...) representa escárnio à nobre função jurisdicional" (ADIs 4357 e 4425). Certamente, na qualidade de Presidente do Conselho Nacional de Justiça, a postura do Ministro Fux não destoará daquela exercida perante o Plenário da Suprema Corte.
A proposta em questão seria menos amarga caso apresentasse solução efetiva para o problema. No entanto, de todas as propostas apresentadas até agora - incluindo-se a PEC proposta pelo Executivo - a hipótese costurada entre os Poderes se mostra a menos eficaz. Cogita-se postergar, para os exercícios seguintes, a parcela de precatórios que exceder o montante pago em 2016, corrigido até hoje pela inflação. A medida indiscutivelmente criará uma gigante bola de neve de precatórios não pagos, eis que o saldo inadimplido dos exercícios anteriores se somará às novas expedições que ocorrem a cada ano. Aos credores que já buscam reparação há muito tempo (as vezes mais de décadas), será imposto algo pior do que um parcelamento: uma moratória sem prazo definido, que estenderá ad infinitum o prazo de recebimento de créditos consagrados pelo Judiciário após décadas de litígio.
Em 2022, apenas R$ 38,5 bilhões seriam pagos, dos quase R$ 89 bilhões orçados. Do saldo remanescente, outros R$ 38,5 bilhões seriam pagos em 2023, e os R$ 12 bilhões remanescentes seriam jogados para 2024. Mantido o ritmo de crescimento do estoque, chegaríamos ao absurdo de ter, a cada 12 anos, um crescimento de 30 anos na fila. Nesse contexto, a título de exemplo, os precatórios expedidos em 2046 somente seriam pagos em 2082; os precatórios de 2058 - expedidos daqui a trinta e seis anos - seriam pagos no próximo século, em 2112.
Se se buscava uma solução, criou-se uma bomba-relógio. Já no ano de 2023 teríamos um saldo de aproximadamente 100 bilhões de dívida em estoque - sem assumir qualquer crescimento inflacionário nesta conta (apenas no gasto do teto). Em 2030, neste mesmo exercício realizado, a conta poderia chegar próxima a 545 bilhões. Ou seja, com uma caneta dada ao CNJ, poderia ser criado um buraco negro dos precatórios federais muito mais danosos para a relação entre os Poderes do que o já existente nos Estados e Municípios, jogando para os próximos governos um problema de crescimento galopante que só trará prejuízos para o País.
Os precatórios são emitidos de forma descentralizada pelo Poder Judiciário, por milhares de juízes espalhados pelo País. Não se pode pretender qualquer controle sobre a expedição de tais ordens, sob pena de esvaziar por completo a autoridade dos Tribunais. E o valor dos precatórios expedidos em nada se relaciona com a inflação: vincula-se ao número de processos julgados a cada ano, que vem crescendo na mesma medida em que o Judiciário se torna mais eficiente. Fica claro que o que se está a apresentar não é uma solução, e sim uma forma bastante eficaz de agravamento do problema.
Muito melhor seria solução diversa, que vem sendo proposta por nomes do mercado como Maílson da Nóbrega e Daniel Goldberg, e que atualmente está em discussão pelo Congresso. Trata-se de alternativa que dá tratamento contábil e orçamentário adequado às despesas com precatórios, incluindo-as no rol do art. 107 do ADCT e excluindo-as do teto de gastos tal como ocorre com as despesas não-recorrentes da Justiça Eleitoral. Tal possibilidade, de um lado, insere as despesas com precatórios no campo orçamentário adequado; de outro lado, altera com coerência o parâmetro do teto de gastos, abrindo espaço de aproximadamente R$ 20 bilhões no orçamento. A solução é técnica e correta. As demais - tanto a inicialmente cogitada pelo Executivo quanto a que se propôs ontem - não possuem qualquer fundamento técnico, contábil, orçamentário ou jurídico, servindo apenas para criar um mágico espaço de quase R$ 50 bilhões nas contas públicas (espaço esse que anunciadamente será destinado a programas populistas em ano de eleição).
Ainda na data de ontem, o Ministro Fux ressaltou que a Suprema Corte não admitirá postergações eternas no pagamento dos precatórios, firme na jurisprudência do STF resumida em expressão cunhada pelo próprio Fux: "calote nunca mais". Será que o CNJ, o TCU e os Poderes que juntos conceberam essa estranha formulação estão entendo o resultado perverso de sua proposta?
*Hipólito Gadelha Remígio é advogado e possui 26 anos de experiência como consultor legislativo na área de orçamento e tributação para o Senado Federal
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