A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que abriu caminho para a responsabilização, na esfera cível, de veículos jornalísticos por declarações de entrevistados é definitiva e terá efeitos em todo o País. Associações de imprensa temem que o entendimento comprometa entrevistas ao vivo e especialistas projetam que a tese fixada pelos ministros poderá estimular a autocensura nas redações.
O Estadão detalha abaixo o julgamento e os efeitos da decisão do STF.
O que o STF decidiu?
A tese definida pelo tribunal prevê que jornais, revistas, portais e canais jornalísticos podem responder solidariamente na Justiça, ou seja, junto com seus entrevistados, se publicarem ou veicularem denúncias falsas de crimes contra terceiros. A responsabilização prevista é na esfera cível, isto é, em ações por danos morais ou materiais. O veículo só poderá ser condenado se ficar comprovado que não verificou os fatos e se houver " indícios concretos” de que a acusação é falsa no momento da entrevista.
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, explicou que a punição depende da comprovação de que houve má-fé ou “grosseira negligência” na apuração das declarações dos entrevistados.
A tese também estabelece que a Justiça pode determinar a remoção de conteúdo da internet com informações comprovadamente “injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”. A remoção poderá ocorrer por meio de liminar, ou seja, decisão provisória antes do trânsito em julgado (quando não há mais possibilidade de recursos) do processo.
Qual o alcance da decisão?
A tese tem repercussão geral, ou seja, funcionará como diretriz para todos os juízes e tribunais do País. Pelo menos 119 processos estavam parados aguardando uma decisão do Supremo. As particularidades de cada caso, no entanto, precisam ser consideradas.
“Cada caso será examinado à luz das suas circunstâncias especiais”, explica o ex-secretário de Justiça de São Paulo Belisário dos Santos Jr. “A responsabilização exigirá a verificação da, primeiro, a existência de indícios concretos de falsidade na época da publicação. A falta de observância do dever de cuidado na aferição da veracidade dos fatos divulgados pelo órgão de imprensa será igualmente fundamental.”
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Como a jurisprudência chegou até aqui?
Para o advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, a tese fixada pelo Supremo foi uma adaptação, para os veículos da imprensa, das exigências previstas no PL das Fake News para as plataformas digitais.
“O que está sendo estabelecido agora para a imprensa é mais ou menos o que se pleitou para as big techs. Da mesma forma que as plataformas são responsáveis pelo conteúdos publicado pelos usuários, a imprensa se torna responsável pelo conteúdo do seu entrevistado”, lembra. “Mas a imprensa cria e pauta o debate público. Podá-la da mesma forma que se pretende poder um usuário de rede social é absolutamente inconstitucional.”
O advogado Fernando Neisser afirma que a Supremo Corte dos Estados Unidos tem um entendimento semelhantes ao agora adotado pelo STF.
“Desde o caso Sullivan v. New York Times, a Supremo Corte entende, igualmente, que o órgão de imprensa pode ser responsabilizado quando divulga fatos sabidamente inverídicos ou quando age com inaceitável descuido em sua apuração”, lembra.
A decisão pode ser revertida?
Os recursos no STF estão esgotados. A decisão poderia ser contestada em uma ação de inconstitucionalidade, mas o próprio Supremo Tribunal Federal ficaria encarregado de analisar o processo. Uma alternativa poderia ser a via legislativa, com a edição de legislação para regulamentar o tema, ou a modulação dos efeitos do julgamento pelo STF, a partir da análise de casos concretos que chegarem ao tribunal.
Como votou cada ministro?
O tema começou a ser julgado em maio de 2020, mas entre idas e vindas, por pedidos de vista dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, só foi concluído nesta semana.
Apenas os ministros aposentados Marco Aurélio Mello, que era o relator do caso, e Rosa Weber votaram contra a responsabilização dos veículos de imprensa, por entenderem que as empresas não podem ser condenadas a pagar indenização se não tiverem emitido opinião sobre as declarações dos entrevistados.
Ao Estadão, Marco Aurélio afirmou que a decisão vai na contramão da liberdade jornalística. “Eu não queria estar na pele da imprensa.”
O que dizem as associações de imprensa?
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) afirma que há pontos que ainda precisam ser esclarecidos pelo STF. “Há dúvidas sobre como podem vir a ser interpretados juridicamente os citados ‘indícios concretos de falsidade’ e a extensão do chamado ‘dever de cuidado’”, diz a entidade.
Outras sete associações da imprensa divulgaram uma nota conjunta alertando para o risco do aumento do assédio judicial a jornalistas e para a inviabilização das entrevistas ao vivo.
“Imputar uma responsabilidade que não cabe aos veículos pode forçá-los, por exemplo, a ter que fazer um controle prévio das respostas de seus entrevistados ou então a deixar de entrevistar, principalmente ao vivo, muitas pessoas, sob risco de terem que enfrentar posteriormente ações judiciais que podem esgotar os recursos do meio de comunicação ou do próprio jornalista processado”, afirmam as entidades.
O texto é assinado pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Instituto Palavra Aberta, Instituto Vladimir Herzog, Repórteres Sem Fronteiras (RSF), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca).
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