Ao indiciar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por fraudes nos cartões de vacina da covid-19, a Polícia Federal (PF) afirma que partiu dele a ordem para a emissão dos certificados falsos de imunização.
Segundo a PF, os registros de vacinas nunca efetivamente aplicadas foram inseridos nos sistemas do Ministério da Saúde “a pedido e no interesse” de Bolsonaro.
“Todas as pessoas beneficiárias das inserções falsas realizada pelo grupo criminoso tinham não apenas plena ciência, como solicitaram/determinaram as inserções falsas nos sistemas do Ministério da Saúde”, crava a Polícia Federal.
Em nota à imprensa, a defesa do ex-presidente negou que ele tenha participado ou tomado conhecimento das adulterações. O comunicado afirma que Bolsonaro não se vacinou por “convicções pessoais” e que, enquanto esteve no cargo, por uma prerrogativa diplomática, não era obrigado a apresentar comprovante de imunização em viagens internacionais.
“Se qualquer pessoa tomou providências relacionadas às carteiras de vacinação do ex-presidente e de sua filha, o fez por iniciativa própria, à revelia de ambos, sendo claro que nunca determinaram ou mesmo solicitaram que qualquer conduta, mormente ilícita, fosse adotada em seus nomes. Certamente não há nos autos nenhuma prova de conduta do ex-presidente em sentido diverso, sendo certo que não havia nenhuma necessidade para tanto”, diz o texto (leia a íntegra da nota ao final da matéria).
O delegado Fábio Álvarez Shor, que conduz a investigação, listou no relatório final do inquérito sete elementos que, em sua avaliação, comprovam as fraudes e a participação do ex-presidente no esquema.
Veja abaixo quais são:
Discurso antivacina
A Polícia Federal começou a desconfiar das fraudes porque, durante a gestão da pandemia, Bolsonaro questionou a eficácia da vacinação e de medidas restritivas e defendeu publicamente medicamentos sem eficácia científica comprovada contra o coronavírus.
“Conforme é de conhecimento notório, o ex-presidente da República Jair Bolsonaro se posicionou contrário à vacinação de crianças e adolescentes”, afirma a PF no relatório final de investigação.
Lapso temporal
Ao inspecionar os sistemas do Ministério da Saúde, a Polícia Federal identificou que os registros de vacinação em nome do ex-presidente e de sua filha, Laura, foram inseridos até cinco meses após as datas da suposta imunização. A informação chamou a atenção dos investigadores porque, via de regra, as doses são atualizadas em no máximo dez dias.
“Geralmente os dados são comunicados de forma imediata ao sistema do Ministério da Saúde, causando estranheza o hiato temporal tão acentuado entre as datas de imunização e de registro no sistema”, aponta o relatório do inquérito.
Conflito de agenda
O certificado de vacinação do ex-presidente aponta que ele teria recebido a primeira dose da vacina contra a covid-19 no dia 13 de agosto de 2022, em Duque de Caixas (RJ). A Polícia Federal cruzou a informação com a agenda de Bolsonaro e concluiu que ele não esteve na cidade na data indicada no cartão.
“No dia 13/08/22, o presidente estava pela manhã no Rio de Janeiro, em entrevista ao Programa Cara a Tapa, na Barra da Tijuca. Já a tarde estava no Centro do Rio, na Marcha para Jesus, onde subiu ao palco por volta das 17:30. Neste dia, conforme informações da Aeronáutica, o Presidente saiu as 08:00 de Brasília, chegando 09:30 no aeroporto Santos Dumont. Às 09:40, o Presidente partiu de helicóptero para o Aeroporto de Jacarepaguá, sendo que as 14:00 retornou, também de helicóptero, para o Aeroporto Santos Dumont. O presidente retornou para Brasília às 21:25 do mesmo dia. Ou seja, era impossível o presidente comparecer a Duque de Caxias para se vacinar”, informou a Controladoria-Geral da União (CGU), a pedido da PF.
A segunda dose teria sido aplicada no dia 14 de outubro de 2022, também em Duque de Caxias, conforme o cartão de vacina. Bolsonaro esteve na cidade para uma caminhada, mas segundo a Polícia Federal “não há nenhum indicativo” de que ele tenha comparecido à unidade de saúde para se vacinar.
Depoimento de Mauro Cid
O depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da presidência apontado pela PF como operador das fraudes nos cartões de vacina, foi fundamental para os investigadores reconstituírem como o esquema foi montado. Ele fechou colaboração premiada com a Polícia Federal e vem delatando Bolsonaro em diferentes inquéritos.
Em depoimento, Mauro Cid admitiu que os primeiros cartões de vacinação fraudados foram os de sua própria família. Ele narrou à Polícia Federal que, ao tomar conhecimento do esquema, Bolsonaro “ordenou” que o assessor fizesse certificados falsos para ele e para sua filha Laura.
“O ex-presidente deu a ordem para fazer os cartões dele e da sua filha”, declarou em depoimento. Mauro Cid também afirmou que os certificados foram entregues “em mãos” a Bolsonaro.
Computador do Palácio da Alvorada
Outro elemento-chave listado pela Polícia Federal é a impressão dos certificados de vacinação de Bolsonaro e de Laura, emitidos pelo aplicativo ConecteSUS, por um computador cadastrado no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente, em dezembro de 2022. As informações foram levantadas junto à Diretoria de Tecnologia da Presidência da República.
A PF cruzou dados de login nos sistemas do Ministério da Saúde e os registros de entrada no Palácio da Alvorada e concluiu que as impressões foram feitas por Mauro Cid.
O passo seguinte foi acessar o histórico de impressão e os discos rígidos das impressoras instaladas na residência presidencial. A PF identificou que o então ajudante de ordens imprimiu os certificados de vacinação de Bolsonaro e Laura em duas versões – português e inglês.
Alteração cadastral
A PF também destaca que o coronel do Exército Marcelo Câmara administrou a conta de Bolsonaro no ConecteSUS. Isso porque, em 22 de dezembro de 2022, o e-mail dele foi vinculado ao perfil do ex-presidente. A data coincide com o período em que o militar, que era assessor especial da Presidência, foi indicado para assessorar Bolsonaro após o mandato. Essa é uma prerrogativa dos ex-presidentes.
“A alteração cadastral se deu pelo fato de que Mauro Cesar Cid deixaria de assessorar o ex-presidente Jair Bolsonaro a partir de 01 de janeiro de 2023, passando tal função a ser exercida por outras pessoas, dentre elas, Marcelo Câmara, que inclusive viajou para a cidade de Orlando em três oportunidades para acompanhar Jair Bolsonaro. Isso justifica a mudança no cadastro do aplicativo ConecteSUS do ex-presidente, que deveria ficar a cargo de alguém que estivesse mais próximo, no caso, o assessor Marcelo Câmara.”
Depoimento de Bolsonaro
Em depoimento à Polícia Federal, Bolsonaro foi questionado sobre a alteração cadastral em sua conta no ConecteSUS. O ex-presidente confirmou que a mudança ocorreu porque Mauro Cid deixaria sua assessoria. Para a PF, a declaração confirma que ele tinha “plena ciência” das emissões dos certificados falsos.
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COM A PALAVRA, A DEFESA DO EX-PRESIDENTE JAIR BOLSONARO
COMUNICADO AOS VEÍCULOS DE IMPRENSA
A defesa do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro, tendo tomado conhecimento esta manhã, por meio de diversos veículos de imprensa, acerca da decisão de formalização de indiciamento de seu cliente nos autos da Petição 10405, que apura fraudes na confecção de cartões vacinais, vem esclarecer o quanto segue:
1. É público e mundialmente notório, que o ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro, por convicções pessoais, jamais fez uso de qualquer imunizante contra COVID-19, a despeito de haver adquirido e disponibilizado milhões de doses a todos os cidadãos brasileiros.
2. Ao ingressar nos Estados Unidos da América (EUA), no final de dezembro de 2022, nenhum atestado vacinal lhe foi solicitado, visto que, na condição de presidente da República, estava dispensado de tal exigência.
3. Ao deixar os EUA, em março de 2023, realizou teste de PCR na véspera, valendo-se de tal documento para regressar ao Brasil.
4. O ex-Presidente JAMAIS determinou ou soube que qualquer de seus assessores tivessem confeccionado certificados vacinais com conteúdo ideologicamente falso.
5. As razões, bastante perfunctórias, indicadas pelo Exmo. Delegado de Polícia Federal, ignoram que não haveria qualquer motivo razoável ou efetividade na falsificação de certificados vacinais em relação ao ex-Presidente e a sua filha, menor de 18 anos.
6. O ex-Presidente não precisava utilizar qualquer documento vacinal, dada sua condição diplomática, para realizar viagem internacional.
7. Sua filha, à época com 12 anos de idade, estaria dispensada de atestado vacinal, visto que nenhum país do mundo impunha a exigência vacinal à crianças.
8. Se, pelas razões expostas, tanto o ex-Presidente como sua filha não necessitavam de certificados vacinais para empreenderem viagem, é inafastável a indagação de qual seria o motivo razoável para que se aderisse a uma arriscada empreitada clandestina e criminosa.
9. Por derradeiro, não é demais obtemperar, de forma hipotética, que se o ex-Presidente, mundialmente conhecido por sua posição pessoal em não utilizar nenhum imunizante, apresentasse um certificado vacinal em qualquer posto de imigração no mundo, séria imediatamente reconhecido e publicamente desqualificado em razão da postura que sempre firmou em relação ao assunto.
10. Assim, a decisão da autoridade policial no caso em apreço se demonstra precipitada, ao menos com relação ao ex-Presidente, visto que não há fundada e objetiva suspeita de sua participação ou autoria nos delitos em apuração.
11. Se qualquer pessoa tomou providências relacionadas às carteiras de vacinação do ex-Presidente e de sua filha, o fez por iniciativa própria, à revelia de ambos, sendo claro que nunca determinaram ou mesmo solicitaram que qualquer conduta, mormente ilícita, fosse adotada em seus nomes. Certamente não há nos autos nenhuma prova de conduta do exPresidente em sentido diverso, sendo certo que não havia nenhuma necessidade para tanto.
São Paulo, 19 de março de 2024
Paulo Amador da Cunha Bueno OAB/SP Nº 147.616 Daniel Bettamio Tesser OAB/SP n.° 208.351 Fábio Wajngarten OAB/SP n.° 162.273
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