A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu o direito das Testemunhas de Jeová, enquanto maiores e capazes, de recusarem tratamentos médicos que envolvam transfusão de sangue, representa um marco importante no que tange à autonomia individual e à liberdade religiosa. O julgamento finalizado em 25 de setembro de 2024, apreciando o tema 952 de repercussão geral, reafirma o respeito pela dignidade humana e a liberdade de escolha, ambos valores fundamentais das democracias liberais ocidentais. O caso nos remete a uma reflexão que é explorada com grande profundidade no romance “A Balada de Adam Henry”, de Ian McEwan, no qual os direitos de autonomia, liberdade religiosa e o papel do Estado são temas centrais.
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No romance de McEwan, a juíza Fiona Maye, de um tribunal inglês, é confrontada com a complexa questão de um adolescente de 17 anos, Adam Henry, uma Testemunha de Jeová, que recusa uma transfusão de sangue essencial para a sua sobrevivência. O dilema moral e jurídico que a protagonista enfrenta revela a tensão entre a obrigação do Estado em proteger a vida de seus cidadãos e o respeito pela liberdade religiosa. A personagem Fiona, ao decidir a favor da transfusão, levanta a questão sobre até onde o Estado pode interferir nas crenças individuais, especialmente quando a vida está em jogo.
O entendimento do STF, em contraste, destaca a evolução dessa discussão em sociedades que privilegiam a autonomia individual. A tese fixada pelo Tribunal sustenta que a liberdade de escolha, quando exercida por indivíduos maiores e capazes, deve ser preservada, mesmo diante de riscos à saúde. Tal decisão ecoa os princípios defendidos por John Stuart Mill, que na obra “Sobre a Liberdade” defende que o indivíduo é soberano sobre si mesmo, seu corpo e sua mente. Para Mill, qualquer interferência estatal só seria justificável na medida em que a ação de uma pessoa possa causar danos a terceiros, o que não se aplica ao caso de adultos conscientes e informados que optam por recusar tratamentos médicos com base em suas convicções religiosas.
Além disso, a decisão também está lastreada no pensamento de John Locke, que sustenta que o papel do Estado é garantir os direitos naturais dos indivíduos, entre eles, a liberdade. Para Locke, a liberdade religiosa é uma extensão do direito à liberdade pessoal e, como tal, deve ser protegida pelo Estado, desde que seu exercício não coloque em risco a paz e a ordem social. O STF, ao reafirmar o direito das Testemunhas de Jeová a recusarem transfusões de sangue, faz exatamente isso: preserva a liberdade individual dentro de um limite razoável, garantindo ao mesmo tempo o direito à saúde através da disponibilização de tratamentos alternativos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Este reconhecimento da liberdade religiosa e da autonomia individual é um dos grandes avanços das sociedades liberais ocidentais.
Trata-se de uma conquista que, embora tenha raízes no Iluminismo e no liberalismo político, só ganhou força plena com o avanço das democracias constitucionais. O pluralismo e a diversidade de crenças, pilares dessas sociedades, impõem que o Estado se mantenha neutro em questões religiosas, respeitando as escolhas individuais, mesmo quando elas possam parecer, à primeira vista, contrárias ao princípio da preservação da vida.
A decisão do STF, assim como o dilema enfrentado por Fiona Maye em “A Balada de Adam Henry”, nos desafia a pensar sobre os limites da intervenção estatal e o respeito pelas escolhas individuais. Se no caso da personagem de McEwan a decisão de impor a transfusão a Adam foi tomada com base em sua menoridade, a posição do STF ao reconhecer a autonomia dos adultos adeptos da religião Testemunha de Jeová ilustra a maturidade de um Estado que reconhece a capacidade de seus cidadãos de tomar decisões informadas sobre suas próprias vidas.
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