Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Acusar Bolsonaro pelo 8 de Janeiro é sacramentar politização da Justiça, diz defesa do ex-presidente

Paulo Amador da Cunha Bueno, criminalista que representa o ex-presidente no inquérito do golpe, afirma ao Estadão que, se o tribunal não agir com ‘máxima transparência e legalidade’ na condução do processo, o julgamento será ‘lembrado como uma nódoa a estigmatizar nossa história jurídica e política’

PUBLICIDADE

Foto do author Rayssa Motta
Foto do author Fausto Macedo
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comPaulo Amador da Cunha BuenoAdvogado criminalista

Na reta final dos preparativos para o julgamento da denúncia do golpe que ocorrerá nesta terça-feira, 25, na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado criminalista Paulo Amador da Cunha Bueno, que representa o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o nome mais importante entre os 34 acusados, defende que não há provas para justificar o recebimento das acusações. Para o advogado, se a denúncia for aceita, os ministros do STF estarão agindo politicamente.

“Em quase dois anos de investigação, buscou-se por toda sorte de meios algum elemento que pudesse conectá-lo ao episódio do 8 de Janeiro. Não conseguiram justamente porque o presidente não teve qualquer participação, ainda que a título de inspiração ou incitação. Acusá-lo por tal episódio é sacramentar que estamos diante de um caso totalmente pavimentado pelo lamentável binômio da judicialização da política e politização da Justiça”, afirma Cunha Bueno em entrevista ao Estadão.

O criminalista avalia que a “variável política” está gravitando ao redor do julgamento. É a primeira vez que se tem notícia de uma tentativa de golpe de Estado desde a redemocratização. Cunha Bueno lembra que Bolsonaro mantém “inegável capacidade eleitoral” e alerta que, se o STF não agir com “máxima transparência e legalidade” na condução do caso, o julgamento “será sempre lembrado como uma nódoa a estigmatizar nossa história jurídica e política”.

“Qualquer processo reclama credibilidade e essa vem só e somente com a rigorosa observância às garantias que devem presidir o andamento processual. Prescindir disso é impor feridas a um processo em que, ao final, o sentimento não será de que houve justiça, mas justamente o inverso”, afirma ao Estadão.

Primeira Turma do STF vai decidir se aceita denúncia da PGR contra Bolsonaro e mais sete aliados no inquérito do golpe. Foto: WILTON JUNIOR

Paulo Amador Bueno coordena a estratégia de defesa do ex-presidente ao lado dos advogados Celso Vilardi e Daniel Tesser. A defesa vem questionando diversos aspectos processuais, como o julgamento na Primeira Turma e não no plenário do STF. Pelo regimento interno do Supremo, ações penais são julgadas nas turmas, para desafogar o plenário e deixá-lo livre para decidir sobre controvérsias constitucionais. Os advogados de Bolsonaro defendem, no entanto, que a regra não se aplica a presidentes e, por extensão, a ex-presidentes. “Essa questão é extremamente sensível, na medida em que fere o chamado princípio do juiz natural criando, por via de efeito lógica, um juízo de exceção.”

Publicidade

O julgamento nesta terça será o primeiro round de uma disputa que opõe o ministro relator, Alexandre de Moraes, constantemente alvo de críticas por adotar um rito rigoroso na condução das investigações do 8 de Janeiro, ao ex-presidente e seus experientes advogados. A própria participação de Alexandre de Moraes na votação é alvo de questionamentos. Para Cunha Bueno, há uma “evidente confusão entre a figura de vítima de uma suposta trama, que é o mérito em si da acusação, e de juiz relator da própria causa”.

Os advogados do ex-presidente também defendem que devem ser aplicadas ao caso as regras do juiz de garantias, que preveem a divisão dos processos criminais entre dois magistrados, um responsável por conduzir a fase pré-processual e outro por analisar as provas reunidas e julgar a ação.

Os processos de competência originária do Supremo Tribunal Federal não estão sujeitos à sistemática do juiz de garantias, mas Cunha Bueno defende que, por ter tomado decisões “bastante significativas” durante a investigação, como ordens de busca e apreensão, prisões preventivas e quebras de sigilo e a homologação da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, o ministro Alexandre de Moraes criou um “estado de coisas em que efetivamente irá participar do julgamento daquilo que diretamente investigou”.

“Esse protagonismo em ambas as fases fere o nosso sistema legal, que exige o distanciamento dessas funções, justamente para conferir isenção e credibilidade ao processo”, argumenta o advogado.

Paulo Amador da Cunha Bueno, advogado criminalista que representa Bolsonaro. Foto: Arquivo pessoal

Leia a entrevista completa com o criminalista Paulo Amador da Cunha Bueno:

Qual é a expectativa da defesa?

A defesa espera — com absoluta tranquilidade na qualidade e procedência de seus argumentos —, que a Corte reconheça, já nesta fase preliminar, os vícios processuais que, desde o período de investigação, vêm maculando todo o processo. Qualquer processo reclama credibilidade e essa vem só e somente com a rigorosa observância às garantias que devem presidir o andamento processual. Prescindir disso é impor feridas a um processo em que, ao final, o sentimento não será de que houve justiça, mas justamente o inverso.

Publicidade

A defesa acredita mesmo que seus argumentos poderão ser acolhidos pelos ministros ou já vê um STF inapelavelmente predisposto a abrir a ação?

Todos os argumentos que vêm sendo articulados desde a fase de investigação e que foram condensados e formalizados recentemente por ocasião de nossa resposta à acusação (defesa preliminar) são extremamente relevantes e consistentes da perspectiva legal. Ignorá-los reclamaria um flagrante contorcionismo jurídico, trazendo como produto final o endereçamento de uma ação penal carente da credibilidade processual que lhe é exigida. Especialmente em um caso como esse — inédito em nossa literatura jurídica e protagonizado por um ex-Presidente da República com inegável capacidade eleitoral —, há de haver o máximo cuidado em que sejam observadas todas as garantias do processo penal e que sua tramitação transcorra dentro da máxima transparência e legalidade ou, de outra sorte, será sempre lembrado como uma nódoa a estigmatizar nossa história jurídica e política.

Que estratégia a defesa vai adotar?

PUBLICIDADE

Nessa fase inicial, cuidamos de arguir todos os defeitos no processo de investigação, a despeito dos quais foi oferecida denúncia pela PGR. Levantamos, entre outras, questões como a competência do plenário, e não apenas da Primeira Turma, para julgar um ex-presidente; a necessidade de aplicação do chamado “juiz de garantias”, para que a função de investigar e julgar não se confundam; a gravíssima e notória falta de acesso à integralidade dos elementos de prova colhidos na investigação, em especial a totalidade das mídias de celulares, computadores e pen drives apreendidos. Tivemos acesso a uma parcela ínfima destes elementos e, pior, cuja juntada aos autos foi previamente selecionada pelos órgãos de persecução penal, como se lhes coubesse decidir a quais conteúdos as defesas têm acesso.

O ministro Alexandre de Moraes é constantemente criticado por advogados dos acusados do 8 de Janeiro. Alegam que ele atropela pedidos dos defensores e não dá acesso à íntegra das provas. No caso do ex-presidente os senhores reclamam de quê exatamente do relator?

Há alguns pontos que entendemos sensíveis. Em primeiro lugar, temos uma evidente confusão entre a figura de vítima de uma suposta trama, que é o mérito em si da acusação, e de juiz relator da própria causa, situação cuja coexistência é altamente questionável. Em segundo lugar, temos colocada a circunstância de o ministro haver participado e tomado decisões bastante significativas durante a investigação (buscas e apreensões, prisões preventivas, quebras de sigilos, bloqueio de bens, homologação de uma conturbada delação premiada, tomada de depoimento de delator etc.), criando um estado de coisas em que efetivamente irá participar do julgamento daquilo que diretamente investigou. Esse protagonismo em ambas as fases fere o nosso sistema legal, que exige o distanciamento dessas funções, justamente para conferir isenção e credibilidade ao processo. Afora isso, questionamos decisões propriamente ditas que foram proferidas ao longo da investigação, como a validade da colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, a sonegação de acesso integral às provas colhidas, a desconsideração de pareceres da PGR, entre outras.

A defesa acredita que pode livrar o ex-presidente da ação penal? 

A defesa tem absoluta convicção de que o presidente Bolsonaro não poderia jamais ter sido acusado e, menos ainda, ter contra si recebida uma denúncia que, para além das graves falhas processuais, traz uma acusação de mérito absolutamente inepta e sem qualquer amparo em elementos mínimos de prova. Vejam que, em quase dois anos de investigação, buscou-se por toda sorte de meios algum elemento que pudesse conectá-lo ao episódio do 8 de Janeiro. Não conseguiram justamente porque o presidente não teve qualquer participação, ainda que a título de inspiração ou incitação. Acusá-lo por tal episódio é sacramentar que estamos diante de um caso totalmente pavimentado pelo lamentável binômio da judicialização da política e politização da Justiça.

Publicidade

Por que Bolsonaro não deve responder a um processo criminal pelo plano de golpe?

Porque, como temos dito e redito, ele jamais teve ciência, incitou, participou ou aderiu a qualquer plano de golpe.

A defesa pediu o julgamento no plenário no STF, no entanto a votação ocorrerá na Primeira Turma. Enxerga algum prejuízo nisso?

Sim e essa é uma nulidade que entendemos gravíssima. O regimento interno do STF é claro em atribuir ao plenário da Corte a competência para julgamento de Presidentes da República. Se a recente jurisprudência do STF ressuscitou o inumado entendimento de que a competência da Corte se mantém mesmo após encerrado o mandato, é evidente que órgão da Corte para julgar um presidente no exercício do mandato, será o mesmo que para julgar um ex-presidente, portanto o mesmo plenário do tribunal. Essa questão é extremamente sensível, na medida em que fere o chamado princípio do juiz natural criando, por via de efeito lógica, um juízo de exceção, estado de coisas altamente repudiado inclusive nas Cortes internacionais.

Como avalia a participação dos ministros que a defesa alega serem suspeitos?

Todas as arguições de impedimento vieram devidamente fundamentadas em razões diferentes entre si, porém, todas trazem como fundamento a exigência da chamada imparcialidade objetiva — que diz com a necessidade de que a pessoa do(s) magistrado(s) traga o real sentimento de distanciamento com o mérito e com as partes de determinada causa. Especialmente em um julgamento com a influência da variável política gravitando em seu derredor, entendemos como cautela elementar que participem só é somente aqueles Ministros contra quem não se possa opor nenhum óbice.

Pretendem contestar a validade da delação do tenente-coronel Mauro Cid?

A colaboração premiada é o instituto mais polêmico e sensível no capítulo das provas no processo penal. O depoimento do colaborador é sempre contaminado com a variável da desconfiança, afinal, oferece-se um beneficio a alguém que tem a perspectiva de uma condenação, tornando superlativa a dúvida quanto à credibilidade de suas declarações. A colaboração do tenente-coronel Mauro Cid é, nessa perspectiva, defeituosa em diversos aspectos e por variados fatos, que vão desde a falta de voluntariedade, por conta do esgarçamento emocional durante quatro meses de prisão preventiva, período em que lhe foi subtraído até mesmo o direito de receber visitas de seu pai e de sua esposa, passando pela oferta de benefícios efetivamente irrecusáveis, diante da ameaça de penas severas e, finalmente, com a manutenção do acordo, a despeito de supostas omissões e contradições em suas declarações, que foram posteriormente detectadas e que deveriam importar no cancelamento do acordo. Essa colaboração tornou reais todos os senões que historicamente fez com que o instituto da colaboração premiada permanecesse proscrito de nossa legislação por quase 200 anos.

Publicidade