
Em 2005, no seu primeiro mandato como deputado federal, o advogado José Eduardo Cardozo assumiu a presidência de comissão mista de estudos criada no Congresso para elaborar uma proposta de reforma do Poder Judiciário. Passados 20 anos, a Lei Orgânica da Magistratura (Loman), o estatuto dos magistrados, permanece inalterada. “Está mais do que na hora de atualizar”, defende Cardozo em entrevista ao Estadão.
A legislação está em vigor desde 1979 (Governo João Figueiredo, último general na Presidência durante o regime de exceção) - antes, portanto, da promulgação da Constituição. Nela estão previstos uma série de privilégios dos magistrados, como 60 dias de férias, fora o recesso de final de ano e os feriados. As propostas de reforma enfrentam forte resistência da classe. Até hoje, nenhuma conseguiu se viabilizar fora do papel.
“Nós temos que parar um pouco com esse espírito corporativo. No Brasil, ele mata o interesse público”, avalia Cardozo, que também foi ministro da Justiça (2011-2016) e Advogado-Geral da União (2016).
O ex-ministro também é a favor de limitar as remunerações de juízes e desembargadores ao teto do funcionalismo, como está previsto na Constituição. Atualmente, magistrados recebem uma série de penduricalhos - as chamadas verbas indenizatórias e compensatórias - não contabilizados no teto.
“Isso tem que ser discutido sem gambiarra, com transparência, porque é dinheiro público”, defende.
O Estadão conversou com o ex-ministro após uma aula magna na ESPM, em São Paulo, onde ele é professor.

Leia a entrevista completa:
Concorda com a PEC do corte de gastos para manter os salários do funcionalismo público dentro do teto?
Eu sou absolutamente favorável à fixação de tetos adequados, mas que sejam cumpridos. No Brasil sempre existe uma gambiarra para descumprir teto. Ao invés de você discutir qual é o teto correto, você discute a gambiarra. Isso tem que ser discutido sem gambiarra, com transparência, porque é dinheiro público. Eu não posso criar gambiarra para fazer de uma forma completamente às escuras. A sociedade tem que saber. Esse é um tema que tem que ser debatido com a sociedade.
Considera necessário reformar a Lei Orgânica da Magistratura para rever privilégios?
Está mais do que na hora de atualizar. Eu acho que, no fundo, nós temos que parar um pouco com esse espírito corporativo. No Brasil, ele mata o interesse público. Não que as corporações não tenham que se defender. Agora, defender sempre o espírito corporativo, acima de qualquer preço, de qualquer interesse do Estado, eu acho isso fútil. E, no Brasil, infelizmente, o espírito corporativo é de um atraso medieval.
Concorda com o diagnóstico de que é preciso dar mais poderes para a União estabelecer diretrizes na Segurança Pública? Considerando as particularidades regionais, quais devem ser os limites para a intervenção federal?
A meu ver, não há solução adequada pra segurança pública no País se não houver um compartilhamento de atribuições entre União, Estados e municípios. A PEC da Segurança Pública é corretíssima. A União deve dar diretrizes gerais, de tal maneira que eu posso unificar o programa de segurança pública e o combate ao crime organizado no plano nacional. Eu era ministro da Justiça na época da Copa do Mundo e de outros grandes eventos. E tinha senadores que diziam que a Copa do Mundo no Brasil iam ser um fracasso, porque a segurança pública destruiria a Copa do Mundo. Pega o resultado. O item mais bem avaliado pelos turistas foi segurança pública. Por quê? Porque houve integração. Nós criamos centros de comando e controle unificados, todo mundo junto, planejando inteligência. Não se deu continuidade a essa política após a queda do governo Dilma. Eu acho que o caminho é correto.
A situação dos presídios é uma questão de segurança?
É uma questão que tem que ser enfrentada pela sociedade brasileira. Quem não percebe que o crime organizado tem a ver com a questão prisional do Brasil é uma pessoa que não entendeu nada da realidade brasileira. As organizações criminosas surgiram nos presídios, pelas más condições carcerárias, é ali que se pega o alimento da organização criminosa. Quando você coloca presos que não deveriam estar presos, ou que poderiam estar cumprindo um outro tipo de pena lá dentro, eles são capturados pelas organizações criminosas. Se eu não enfrentar isso, eu não combato a organização criminosa.
Estamos vendo o Congresso debater projetos sobre o funcionamento do STF. Na sua avaliação, o processo decisório do tribunal é funcional?
Vamos falar do ideal. A meu ver, as cortes constitucionais deveriam ter mandatos, como na Europa. Eu acho que o sistema dos Estados Unidos, de cargos vitalícios, já deu o que tinha que dar. Eu defendo isso. Porém, hoje, quando se discute corte constitucional, é em represália atual ao Supremo. A discussão não leva em conta o que é bom para o Estado e nem coloca daqui a uns anos. É agora. Eu quero tirar o fulano, então vamos fazer isso.
O STF não contribuiu para essas reações?
Eu acho que todos contribuíram. É um fenômeno mundial, que é a judicialização da política. Nos Estados contemporâneos, os perdedores vão ao Judiciário. E aí o Judiciário passa a ter um papel político. E às vezes gosta do papel político. Os juízes se apresentam como atores políticos. Quando se apresentam como atores políticos, são vaiados, aplaudidos e tratados como tal pela sociedade. Isso desgasta o sistema. Então, é preciso repensar esse sistema. O problema é que as pessoas sempre pensam na ótica do seu umbigo.
O que pensa sobre as propostas de mandato para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal?
Sempre fui contra. A investigação criminal deve ser conduzida por pessoas independentes. Agora, na medida em que eu vou ter atividade policial subordinada ao Executivo, o Executivo tem que orientar as políticas. Eu não posso desestruturar a hierarquia do Poder Executivo.
O senhor comandou o Ministério da Justiça no auge da Operação Lava Jato. Hoje, a investigação é criticada por excessos. Nós criamos mecanismos institucionais para melhorar o combate à corrupção e evitar anulações?
Não. A pretexto de uma coisa virtuosa, que é o combate à corrupção, a Lava Jato trouxe prejuízos muito maiores que os benefícios. É a história do arbítrio, comprovado hoje. Enquanto a gente continuar acreditando em super-homens e super-mulheres há um risco. O Estado de Direito não é assim. É preciso respeitar garantias e direitos. A convicção de que houve um crime não serve para nada. É preciso provas. Se não construirmos isso, nós estamos transformando a sociedade em uma arena romana. Isso não é Estado de Direito.
O ministro Alexandre de Moraes pode estar na relatoria do inquérito do golpe?
Sim. Por várias razões. Primeiro, ele já era o relator quando acontecem os fatos. A legislação é muito clara. Situações de impedimento criadas a posteriori não geram afastamento. Isso seria uma maneira de quebrar o princípio do juízo natural em que o réu escolhe o julgador que ele quer. Segundo ponto. Tirando as situações localizadas do Alexandre de Moraes, a vítima é o Estado. Então, por essas razões, eu acho que seria um absurdo afastá-lo do caso.
Algum plano político para 2026?
Olha, em princípio, estou muito bem na advocacia. Estou ótimo onde eu estou. Se a vida me reservar alguma coisa, eu vou discutir na hora. Nesse momento, eu estou muito bem aqui dando minhas aulinhas.