São Sebastião - Vila Sahy, 18 de fevereiro de 2023.
Após fortíssima tempestade, talvez a maior já registrada no Brasil, um mar de lama atingiu moradores e algumas dezenas deles morreram soterrados.
Mortes inúteis? Muito provavelmente, pois dentro de alguns meses a vida voltará ao normal e as lições que poderiam ter sido extraídas dessa tragédia também estarão ali no meio da lama.
Embora se tratasse de fenômeno atípico, jamais considerado em projetos de residências ou de infraestrutura, por que essa ocorrência foi mais cruel com os moradores de locais "menos privilegiados''?
Por uma razão muito simples: essas pessoas não poderiam estar lá!
O Poder Público não deveria - em hipótese alguma - permitir que áreas sujeitas a riscos fossem ocupadas, pois ali as tragédias são anunciadas. Só não se sabe o dia e o horário em que ocorrerão.
Por outro lado, o Poder Público deveria dar condições para que moradias dignas pudessem ser construídas em lugar seguro para essas pessoas.
Duas questões distintas, intimamente relacionadas.
Pesquisando fotografias aéreas da região, é possível constatar que a ocupação da Vila do Sahy começou há cerca de 35 anos. Também se observa, nessas mesmas fotografias, e sem que seja necessário qualquer equipamento, que era uma região recoberta por mata e junto a encosta íngreme.
Mexer nessa mata exigiria, na melhor das hipóteses, análise das restrições ambientais.
Permitir a construção junto ou na própria encosta íngreme seria, por si, uma temeridade para qualquer engenheiro com conhecimentos básicos de geotecnia.
Como sempre, ocupações irregulares prescindem dessas "burocracias". Coitados dos incautos que ali vão morar.
As comunidades vão aumentando gradativamente até que, em geral, são descobertas ou adotadas por políticos que, conseguindo proporcionar alguma infraestrutura a elas, passam a contar com um eleitorado fiel, atendido a conta-gotas, de acordo com os interesses ditados pelo calendário das eleições.
Outros políticos - ou os mesmos - impedem que seus currais eleitorais sejam extintos pela retirada dos moradores.
As prefeituras, sempre alegando falta de recursos e de pessoal, ante grande extensão territorial, fecham os olhos.
O curioso é que, em particular em São Sebastião, cidade que recebe vultuosos royalties do petróleo, essa está sempre com os olhos abertos e atenta para qualquer ampliação em construções regulares, utilizando os mais modernos recursos tecnológicos para aumentar a cobrança de IPTU referente a qualquer acréscimo de área construída.
Também há claras demonstrações de dinheiro público sobrando para ser mal empregado como, por exemplo, em uma espécie de praça, de gosto para lá de duvidoso, construída durante pelo menos dois anos à beira da rodovia, a cerca de 10 km do local da tragédia, na praia de Boiçucanga.
Então, não há desculpas para não monitorar e coibir ocupações irregulares, em zonas de risco. Há dinheiro e há tecnologia.
Para a questão de moradia digna em locais adequados, o lugar comum é que as restrições ambientais impedem ou dificultam o parcelamento do solo ou a construção de conjuntos habitacionais.
Quero entender melhor. Uma ocupação irregular deteriora o meio ambiente por si e ponto final. Por que um projeto tecnicamente estudado não pode ser licenciado? Poesia, burocracia ou o que impede isso?
Enquanto essas incoerências ocorrerem, muitas e muitas dezenas de pessoas continuarão a morrer inutilmente.
*Flavio F. de Figueiredo, engenheiro civil, consultor. Diretor da Figueiredo &Associados Consultoria. Autor e coordenador de vários livros sobre vistorias e perícias, nos quais é especialista. O mais recente, Perícias em engenharia - uma visão contemporânea. Conselheiro do IBAPE/SP - Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de São Paulo
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