É muita, muita tristeza a vida de um viciado, gente.
A cabeça só funciona pelo pó. Dez minutos é o tempo que ele consegue ficar sem a química, isso vai até à noite, hora que ele está reclamando que seu nariz está machucado, sensível, e hora em que seu estômago reclama e ele necessita forçar o vômito, para colocar toda aquela química pra fora, pois a fome não chega nem perto, por dias a fio, pra quem usa essa droga.
Ele está cada dia mais apático, sem amigos, 'maquiando' os familiares, mentindo estar bem, pois acabou de voltar de uma clínica onde ficou por 8 meses internado.
Ele é dependente de álcool e cocaína. Teve recaída da cocaína. O álcool não faz mais o seu gosto. Sentada conversando com ele, aquele tédio. Ele procura músicas em seu celular para se distrair, bem louco fala que quer chamar uma garota de programa.
Mas a necessidade dele não é transar, ele nem consegue, é apenas ter mais uma companhia, não se sentir só.
Eu sou a única que não o critica, sei qual é o seu problema. Uma garota de programa certamente também não irá julgá-lo.
Lágrimas escorrem no meu rosto. O que faço eu nesse lugar?
Eu me questiono, mas insisto em ir, às vezes, passar o dia, até finais de semana e feriados com ele apenas para lhe fazer companhia, ajudar nas horas mais difíceis, como nas madrugadas em que ele 'caça' ansiosamente em todos os bolsos de suas calças jeans pra saber se restou algum saquinho para cheirar naquele intervalo em que acordou para fazer xixi.
Quando se levanta, mal consegue andar. A medicação começa a perder efeito para ele voltar a dormir. Ele se desespera. Se não dormir vem a vontade de cheirar, aquilo é uma agonia para ele.
Vasculha a casa, em busca da chance de encontrar um pouco de cocaína, nem que seja um restinho espalhado pelo chão do apartamento. Nada! Decide, então, bisbilhotar o lixo do banheiro. E eu, ali, apenas observando, pensando, sofrendo com ele...
Do cesto, com as próprias mãos, ele tira o papel higiênico usado para separar dos saquinhos que ali jogou durante o dia. Pega um por um, saquinho por saquinho, se contar dá uns 40 que usou.
Vai sacudindo, um a um, para ver o que sai dali. E não é que, em meio a esses resquícios, consegue montar uma pequenina 'carreira' para dar seu 'último' tiro?
Último? Que nada! Aí começa o desespero da madrugada. Acendeu a chama novamente. Ele começa a procurar seus 'amigos' traficantes pelo aplicativo, a entrega é a domicílio, mas ele só tem cartão, o dinheiro acabou, traficante não aceita cartão de crédito.
Ele me olha, como um cão sem dono, desesperado tipo 'compra pra mim?' Eu, com dor no coração, vou tentando convencer que já é hora de voltar a dormir. Pego um rivotril, que está autorizado a usar, e dou para ele dormir.
O que fazer? Faço ele dormir ou compro a droga?
Ao telefone dele não tenho mais acesso como antes. Ele sabia que eu excluía tudo o que não prestava dali. Nem o telefone dos pais dele tenho mais.
Seu apartamento agora tem alarme e senha para entrar, não posso mais arrombar a porta como fazia quando ele a trancava e se isolava.
Minha companhia já não faz mais efeito, virei uma espécie de enfermeira não qualificada tentando contornar seu vício.
O que restou para ele se sentir bem? Uma garota de programa, sem qualquer preconceito, nada contra, mas pagar uma companhia.
É o pico da solidão e, com isso, ele vai piorando, questionando, se escondendo, definhando, me evitando quando penso em abrir o jogo para a sua família.
Se ele perde a confiança em mim, quem estará por perto em seus dias mais turbulentos para socorrê-lo? Não tenho saída. É hora de eu voltar à minha rotina. Deixo ele dormindo, vou embora.
Ele some, ele não atende telefone, ele não dá notícias, mas na hora do aperto, aquele aperto mesmo, é a mim que ele recorre, sempre. Porque o meu colo ele terá enquanto precisar, assim como qualquer outro dependente químico que necessitar de mim um dia.
Eu estou aqui! Fernanda Alves*, jornalista e apresentadora, embaixadora 'SOS Dependentes Químicos'
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.