Ouço recorrente lamento por não haver um titular no Ministério da Saúde. É o que confirma a minha sensação de que a população assimilou o conceito de "Estado-babá". Se não houver governo para cuidar de tudo, ninguém sabe o que fazer.
Reconheço que numa pandemia que já infectou milhões de brasileiros - embora se divulgue pouco mais de um milhão, na verdade os matemáticos e estatísticos dizem que podem ser cinco vezes mais - faça falta uma coordenação central. Tudo a corresponder à concepção generalizada de que, embora o figurino seja de uma Federação, continuamos a ser um Estado unitário. Atrasado, obsoleto, espoliador, mas unitário. Tudo se concentra em Brasília, palco de horrores que oferece à Nação o quadro dantesco e surreal do retrocesso em que mergulhamos.
Se toda tragédia pode ostentar algo de positivo, penso que a ausência de um ministro da Saúde não é um fato a se lamentar. Talvez tenha chegado o momento de a cidadania levar a sério o lema "Menos Brasília, mais Brasil". O Ministério da Saúde da Negação não quer divulgar a verdade, como se dezenas de milhares de cadáveres pudessem permanecer escondidos sob o encardido tapete da mentira.
Enquanto isso, consórcio de mídias assumiu o controle e oferece as cifras reais a cada noite. Ao contrário da sonegação planaltina, São Paulo atua sob forma cooperativa, tem Comitê de Contingência, dá um exemplo de aliança entre governo estadual e Universidade, entidades científicas e culturais, empresariado e terceiro setor. Quase diariamente há o encontro do governo bandeirante com a população, que se pode assistir por todas as mídias. Enquanto o governo federal se omite, o governo estadual enfrenta a ira retumbante dos filhotes do gabinete do ódio, a lançarem impropérios como se a manifestação viesse a refletir a opinião de todos os brasileiros.
Não é chegada a hora de repactuar a Federação? Ela teria de vir com profunda reforma estrutural do sistema tributário. Esvaziar a União. Ela se perdeu no convívio incestuoso de Brasília, que só enxerga aquele cenário ritualístico, de formalismos e procedimentalismos pífios. Enquanto isso, a verdadeira Nação tem de encontrar alternativas para vencer os desafios e os enfrenta com garra, força e empenho.
O Brasil preservou sua dimensão continental, mas é ilusório acreditar que de Brasília se possa governar todos os diferentes brasis, com suas peculiaridades, suas vocações regionais, sua cultura exuberante, mas distinta. É urgente reforçar Estados e Municípios e fazer da União apenas aquele simbolismo inibidor da secessão, mas coibida de fazer o festival de gastanças com o dinheiro extraído de um povo cada vez mais pobre.
Os municípios também devem ser reforçados, principalmente aqueles que têm condições de subsistência autônoma, sem a peregrinação constante de "pires na mão", para pleitear recursos federais.
Devolver a prerrogativa da autonomia integral a cada unidade da Federação é permitir que as respostas sejam imediatas, sem as arapucas burocráticas da liberação de verbas federais, sem o vergonhoso custo de uma máquina que nada produz, mas que debilita a já combalida economia nacional. União é simbologia, não faz sentido ser a grande concentradora de verbas, o destino obrigatório de todo o suor e sangue produzido em cada rincão do país.
A acefalia do Ministério da Saúde talvez seja um bom modelo para que se devolvam a cada Estado da Federação as competências típicas a uma verdadeira aliança entre iguais, que outra não é a ideia original de Estado Federal. Permitir que a União se sobrecarregue, tenha um custo exorbitante e não corresponda à expectativa de comportamento que seria legítimo exigir, é um equívoco doloroso.
São Paulo provou que pode subsistir a despeito da prática inexistência de um ministro da Saúde. Por que não aproveitar e redesenhar a Federação Brasileira?
Não foi acaso a opção do constituinte por um Estado Federal de índole democrática, no qual até os Municípios integram a estrutura governamental. Saudades de Franco Montoro, não só o homem público, mas o talentoso e sedutor mestre de Teoria Geral do Estado da PUC-SP, a lembrar que "ninguém nasce na União, nem no Estado; as pessoas nascem na cidade".
É na cidade que os destinos traçam sua trajetória sobre esta efêmera e frágil peregrinação pelo Planeta. Cumpre respeitar as vocações locais. Sem a interferência pesada e sacrificial de uma União distante, narcisista e egoísta.
Pensemos bem: faz mesmo tanta falta um ministro da Saúde?
*José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2019-2020