Em meio ao rescaldo dos 60 anos do golpe militar, o decano do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, usou o julgamento sobre a tese de ‘poder moderador’ das Forças Armadas para ressaltar como a sociedade ‘nada tem a ganhar com a politização dos quartéis’. Ele adverte que a ‘hermenêutica da baioneta não cabe na Constituição’.
O ministro usou seu voto de 12 páginas para criticar a reivindicação, por parte das altas cúpulas militares, de um maior protagonismo político. Gilmar afirma. “Do alto de suas pretensões de poder, chegaram ao descalabro de tentar constranger até mesmo este Supremo Tribunal Federal no exercício de suas competências constitucionais.”
O decano se refere expressamente ao episódio em que o ex-comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, publicou mensagem em suas redes, em meio ao julgamento às vésperas do julgamento do Habeas Corpus do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. Na ocasião, Villas Bôas afirmou que a caserna estava ‘atenta às suas missões institucionais’.
Villas Bôas postou. “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
Ao trazer para seu voto a fala do general, Gilmar Mendes escreve. “Refiro-me, em particular, à declaração veiculada em 3 de abril de 2018 pelo general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, então Comandante do Exército Brasileiro, a propósito do julgamento do HC 152.752/PR, que seria finalizado no dia seguinte e no qual se discutia a constitucionalidade da execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”
O decano classifica a mensagem do general como uma ‘ameaça velada’, com ‘propósito confessado de constranger a Corte’.
“Outra não pode ser a conclusão quando o próprio emissor (Villas Bôas) a qualifica como um ‘alerta’. Igualmente confessado é o fato de que o texto da mensagem foi discutido pela cúpula do Exército. Os envolvidos conscientemente reconheciam a gravidade do que estavam fazendo”, afirma o ministro.
Ele transcreve o voto do então ministro Celso de Mello (aposentado) dado no dia seguinte à postagem de Villas Bôas. Então decano da Corte, Celso de Mello dirigiu pesada reprimenda a ‘intervenções’ militares.
“Já se distanciam no tempo histórico os dias sombrios que recaíram sobre o processo democrático em nosso País, em momento declinante das liberdades fundamentais, quando a vontade hegemônica dos curadores do regime político então instaurado sufocou, de modo irresistível, o exercício do poder civil”, anotou Celso de Mello, na ocasião.
Ainda Celso de Mello. “É preciso ressaltar que a experiência concreta a que se submeteu o Brasil no período de vigência do regime de exceção (1964/1985) constitui, para esta e para as próximas gerações, marcante advertência que não pode ser ignorada: as intervenções pretorianas no domínio político-institucional têm representado momentos de grave inflexão no processo de desenvolvimento e de consolidação das liberdades fundamentais. Intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor das liberdades que se lhes segue, a diminuir (quando não a eliminar) o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando, desse modo, com danos irreversíveis ao sistema democrático, a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania.”
Em seu voto para enterrar o ‘poder moderador’, Gilmar destaca como o ‘processo de crescente protagonismo político das altas cúpulas militares’ se aprofundou com a eleição de Jair Bolsonaro.
Ele critica o número de cargos ocupados pelos militares no governo do ex-presidente, ‘prática que, apesar de não ter sido expressamente vedada pelo texto constitucional, certamente desafia a Constituição, pois atividades como a articulação política e a atividade de teor ideológico ou partidário são incompatíveis com o ofício militar’.
O ministro observa como a violência dos atos golpistas de 8 de janeiro não pode ser ‘devidamente compreendida se dissociada desse processo de retomada do protagonismo político das altas cúpulas militares’.
“É na ambiência desse processo de indevida politização das Forças Armadas que a pitoresca interpretação do artigo 142 da Constituição combatida nestes autos é recuperada e instrumentalizada de modo a subsidiar tentativas de subversão do Estado Democrático de Direito. A rejeição veemente dessa interpretação inconstitucional por esta Suprema Corte se mostra não somente oportuna como imperativa”, conclama.
O Supremo já tem maioria para declarar inconstitucional qualquer interpretação que permita uma intervenção das Forças Armadas sobre os Poderes ou que as classifiquem como um ‘poder moderador’ durante crises institucionais.
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