A Operação Lava Jato completa 10 anos da deflagração da primeira fase da investigação neste próximo 17 de março. Na última década, a operação mexeu no xadrez político nacional ao enquadrar criminalmente e prender ex-presidentes da República, parlamentares, os grandes empreiteiros do setor de infraestrutura, doleiros e ex-mandatários de postos estratégicos da Petrobras, pilhados no maior escândalo de corrupção e cartel já visto no País. Foram recuperados R$ 2 bilhões para os cofres públicos por meio de acordos de delação premiada e de leniência homologados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A Lava Jato perdeu força a partir de 2018, quando o então juiz Sérgio Moro, que conduziu a operação, aceitou o convite de Jair Bolsonaro, que acabara de se eleger presidente, para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública. O movimento político do magistrado, que havia condenado o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – sentença confirmada por outras instâncias judiciais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, alijando o petista das eleições daquele ano, abriu espaço para especulações sobre as intenções do ex-juiz e dos procuradores que formaram a poderosa força-tarefa do Ministério Público Federal baseada em Curitiba.
Em 2019, um novo revés. Críticos da operação aumentaram o tom dos questionamentos após mensagens trocadas por procuradores e Moro, acessadas por um audacioso hacker, se tornarem públicas. O conteúdo, revelado pelo site The Intercept Brasil, indicava uma parceria entre o então juiz e os procuradores na condução da Lava Jato, uma proximidade que, na avaliação de ministros do Supremo, violou a Constituição e regras básicas do Direito.
A partir daí, as ações penais que haviam levado à condenação de Lula e também do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, do ex-governador do Rio Sérgio Cabral e de outros investigados caíram, uma a uma. As mensagens hackeadas embasaram decisões judiciais que beneficiaram réus da operação, anulando processos ou transferindo a competência de julgamento para a Justiça Eleitoral e para a Justiça comum.
A ofensiva sem paralelo de Moro e dos procuradores no combate à corrupção elevou a Lava Jato ao topo, reconhecida em todo o País e no exterior como a nova Operação Mãos Limpas que, nos anos 1990, também acuou grandes empresários e políticos metidos em negócios escusos na Itália. De Lula, a força-tarefa ganhou a alcunha “República de Curitiba”.
Investigação começou em posto de gasolina de Brasília
Antes de alcançar expoentes da política nacional, a Lava Jato mirou um esquema prosaico de lavagem de dinheiro envolvendo um velho conhecido da Justiça do Paraná, o doleiro Alberto Youssef, e um posto de gasolina em Brasília - endereço que deu origem ao nome da operação. Youssef – protagonista de um outro escândalo, o caso Banestado – foi preso em um hotel, em São Luís (MA), em 17 de março de 2014. Três dias depois, a Polícia Federal capturou, por ordem de Moro, o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, que havia recebido um carro importado do doleiro.
A prisão de Costa descortinou um ambiente de improbidade e fraudes na grande estatal do petróleo. A investigação revelou que áreas sensíveis foram ‘loteadas’ por agremiações políticas entre 2003 (primeiro governo Lula) e 2014 (governo Dilma). Segundo a Lava Jato, sob o guarda-chuva das Diretorias de Abastecimento (sob comando de Costa pelo PP), Internacional (liderada por Nestor Cerveró pelo MDB) e Serviços (a cargo de Renato Duque pelo PT) formou-se um cartel de empreiteiras que se apossaram de contratos bilionários.
Em agosto de 2014, Costa tornou-se o primeiro delator da Lava Jato e devolveu uma fortuna que mantinha depositada no exterior. Dinheiro de propinas, segundo ele próprio confessou. O ex-diretor recolheu multa de R$ 5 milhões e entregou US$ 25,8 milhões (R$ 58,2 milhões em valores da época) que estavam em contas na Suíça e nas Ilhas Cayman. Costa morreu em 13 de agosto de 2022, aos 68 anos, vítima de um câncer de pâncreas.
Depois dele, Youssef também fechou delação premiada. Os acordos de colaboração se tornaram um método inovador da investigação para fechar o cerco, paulatinamente, a políticos até então intocados.
A partir do confinamento de Paulo Roberto Costa, que havia sido alçado à diretoria da estatal por influência do Partido Progressista, a Lava Jato ganhou o noticiário por toda a década que se seguiu, e até hoje divide opiniões e manifestações. Ministros do STF, antes apoiadores da Lava Jato, de Moro e dos procuradores, voltaram-se contra a operação – sob alegação de excessos e arbítrios.
“Na verdade, o que se instalou no País nesses últimos anos está sendo revelado na Operação Lava Jato é um modelo de governança corrupta, algo que merece o nome claro de cleptocracia, isso que se instalou”, afirmou o ministro Gilmar Mendes, em setembro de 2015. Decano do STF, Mendes passou a condenar a atuação dos procuradores no ano seguinte, defendendo limites à atuação dos investigadores. O ministro se tornou um ferrenho crítico da Lava Jato a partir de então.
Primeira grande ofensiva da operação: prisão de empreiteiros
O primeiro ano da Lava Jato ficou marcado por revelações de delações premiadas e pelas prisões de executivos das gigantes da construção do Brasil. Era novembro de 2014, quando o vice-presidente da Mendes Júnior, Sérgio Cunha Mendes, chegou a Curitiba em seu jatinho particular. Alvo de um mandado de prisão na sétima fase da operação, intitulada Juízo Final, o executivo não queria ser transportado para a sede da PF na capital paranaense em um avião da corporação.
Neste mesmo dia, foi detido o ex-diretor de Serviços da Petrobras, engenheiro Renato Duque, ‘cota’ do PT no organograma da estatal petrolífera. Durante buscas em sua residência, o engenheiro ligou para seu advogado e protestou. “Que país é esse?” (Ouça abaixo). Mais tarde, ele próprio juntou-se ao time daqueles que admitiram ter embolsado altas somas repassadas por empresários contratados de sua diretoria.
A Lava Jato virou uma usina de delação premiada. Ao todo, ela fechou cerca de 200 acordos ao longo de sua existência, o que provocou protestos de advogados de defesa, segundo os quais Moro mandava prender para forçar a confissão dos alvos da operação. Em outra colaboração fechada em 2014, o ex-gerente da estatal Pedro Barusco Filho confessou que mantinha US$ 67,5 milhões (R$ 174,4 milhões em valores da época) em offshores.
O dinheiro, segundo o executivo declarou em delação, era produto de propinas. Entregou uma planilha com siglas e valores ilícitos recebidos, mês a mês. Ele devolveu a dinheirama, cuja repatriação autorizou espontaneamente.
Acordos firmados pela operação também receberam ataques veementes de defensores de investigados, que acusavam os delatores de não comprovarem suas informações. Em 2017, o Ministério Público Federal afirmou que o ex-senador Delcídio Amaral havia mentido em sua colaboração e pediu à Justiça que cortasse os benefícios concedidos ao ex-parlamentar.
O relato mais impactante sobre fluxo de dinheiro ilícito durante a Lava Jato ficou a cargo da Odebrecht. A empreiteira elencou 415 políticos de 26 partidos nos anexos que entregou à força-tarefa. Um grupo de 77 executivos confessou detalhadamente a existência de um departamento que corrompia agentes públicos e financiava partidos e campanhas no Brasil e no exterior. Seu nome na estrutura da empresa era Setor de Operações Estruturadas, ou ‘máquina de propinas’. Operou até 2015, pouco antes de o então presidente da companhia, Marcelo Odebrecht, ser preso na operação – o que ocorreu em junho daquele ano.
Em janeiro de 2017, o STF homologou a delação de todos os executivos ligados à empreiteira, no acordo mais extenso produzido pela Lava Jato. O chefe do departamento de propinas, Hilberto Mascarenhas Filho, declarou que a área movimentou US$ 3 bilhões entre 2006 e 2014 para pagamentos de vantagens, caixa 2 para políticos e campanhas e bônus não declarados para executivos do grupo. Hilberto Mascarenhas definiu a área como “trepa moleque”.
“Só coisa errada. Moleque não trepa em árvore para poder roubar, trepa nos muros? Então, era só ‘trepa moleque’”, disse em depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2017.
A Odebrecht teve papel central nas investigações e em duas denúncias contra Lula. Emílio Odebrecht, patriarca da empreiteira, e seu filho, Marcelo, o presidente, à época da Lava Jato, fizeram longos relatos aos investigadores. Como também um ex-aliado de Lula, o ex-ministro Antônio Palocci. Ministro da Fazenda no primeiro governo do petista e ministro da Casa Civil do governo Dilma Rousseff, Palocci fez delação premiada e entregou o velho companheiro.
A OAS foi pivô de uma terceira acusação contra o presidente. O petista ficou preso durante 580 dias na Polícia Federal, em Curitiba. Em 2021, as sentenças que condenaram Lula foram anuladas pelo Supremo, que viu incompetência de Sérgio Moro para julgar o caso e apontou parcialidade do ex-magistrado.
Além da anulação de sentenças condenatórias de Lula, o Supremo passou a rejeitar sistematicamente denúncias da Procuradoria-Geral da República. Por exemplo, em dezembro passado, à unanimidade, os ministros não aceitaram uma acusação contra o senador Ciro Nogueira (PP-PI) por suposta propina de R$ 7,3 milhões da Odebrecht. Em seu voto, o ministro Edson Fachin destacou que a Lei Anticrime vedou o recebimento de denúncias com fundamento apenas em palavras de delatores.
Outra empreiteira, a OAS, foi preponderante na condenação de Lula no caso do famoso triplex do Guarujá - o então presidente da empresa, Léo Pinheiro, que também fez delação premiada, afirmou ter patrocinado ampla reforma do imóvel à beira-mar que, segundo a acusação da Lava Jato, pertencia a Lula.
Neste processo, o petista foi condenado por Moro a 9 anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A sentença foi confirmada por três desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre – o colegiado ampliou a condenação para 12 anos e um mês de prisão. Depois, cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça diminuíram a pena para 8 anos, 10 meses e 20 dias de reclusão. A condenação foi derrubada pelo STF.
Dois ex-presidentes na prisão
Na manhã de 21 de março de 2019, quando deixava sua casa na rua Bennet, no Jardim Universidade, zona oeste da capital paulista, Michel Temer (MDB) foi preso na Operação Descontaminação, desdobramento da Lava Jato no Rio.
O inquérito teve como base as delações do empresário José Antunes Sobrinho, ligado à Engevix, e do corretor Lúcio Bolonha Funaro. O ex-presidente foi apontado como suposto beneficiário de propinas em troca do direcionamento de contratos da Eletronuclear.
Temer passou quatro noites preso preventivamente até conseguir um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e se tornou o segundo ex-presidente preso na Lava Jato. Ele sempre rechaçou com veemência suspeitas sobre sua conduta e foi absolvido sumariamente das acusações em dezembro de 2023.
Virada no Supremo Tribunal Federal
Embora tenha sido um importante avalista da Lava Jato nos primeiros anos da investigação, o STF impôs derrotas severas à operação, sobretudo depois que vieram a público as mensagens da Vaza Jato. Os ministros iniciaram um movimento de ‘contenção de danos’, para evitar que a imagem do Judiciário fosse arranhada pelas polêmicas de Curitiba.
A Corte barrou as conduções coercitivas, método corriqueiro empregado pela força-tarefa, e também afirmou a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar ações de corrupção relacionadas ao caixa dois de campanha, o que levou à transferência massiva de processos das varas criminais da Lava Jato.
Em uma reviravolta da operação, o Supremo mudou o posicionamento sobre a prisão de réus condenados em 2ª instância. Ao proibir a execução da pena antes do esgotamento de todos os recursos judiciais, o STF beneficiou diretamente Lula, que foi solto após 580 dias em uma sala especial da superintendência da Polícia Federal de Curitiba.
Àquela altura, o petista ainda estava inelegível. Lula foi reabilitado politicamente em 2021, a pouco mais de um ano da eleição que lhe garantiu o terceiro mandato, depois que os ministros anularam todas as suas condenações na Lava Jato com a justificativa de que a Justiça Federal em Curitiba não era o foro adequado para julgamento. Os processos foram remetidos à Justiça comum de Brasília.
Em um intervalo de dois meses, o STF jogou a pá de cal nas investigações sobre o petista ao reconhecer que Moro foi ‘parcial’ na condução de inquéritos e ações penais, chancelando a narrativa da defesa de que houve uma perseguição política a Lula.
O Supremo também teve papel crucial para tirar da vida política Deltan Dallagnol, ex-coordenador da Lava Jato no auge da operação. O ministro Dias Toffoli negou um recurso do ex-procurador para recuperar o cargo e chancelou a posição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou seu mandato. Deltan desistiu do último apelo ao plenário do STF, alegando que seria julgado pelos mesmos ministros que “mataram a Lava Jato”.
Após revezes da Lava Jato, empresas passam a apontar coação
Além da delação de seus executivos, a Odebrecht fechou um acordo de leniência, homologado em 2016, e assumiu o compromisso de pagar R$ 3,8 bilhões. O valor corrigido chegaria a R$ 8,5 bilhões ao final da quitação. Em fevereiro último, o ministro Dias Toffoli suspendeu o pagamento das parcelas do acordo da Odebrecht, atendendo a um pedido da empresa, que alegou ter sido ‘pressionada’ a fechar a leniência para garantir sua sobrevivência financeira e institucional. O ministro adotou a mesma linha que havia emprestado em decisão anterior, quando, em dezembro passado, decretou a interrupção de repasses bilionários da J&F ao Tesouro.
Todos os delatores da Odebrecht fizeram seus depoimentos a procuradores da República, acompanhados de advogados, em sessões registradas em vídeo. Nunca denunciaram assédio ou pressão dos investigadores. As imagens mostram depoentes à vontade, dispostos a responder ponto a ponto as indagações dos procuradores.
Durante os depoimentos ao Ministério Público Federal, Hilberto Mascarenhas Filho, chefe do setor de propinas da Odebrecht, contou, sorridente, que seu trabalho era feito na base da confiança. “Como você está lidando com um caixa que é fora da contabilidade, ele pode sumir. Precisava de alguém que garantisse que ele não ia sumir”, relatou. “Esse assunto não tem outra forma de ser, se não for na confiança.”
Empolgadas com o êxito da Odebrecht e da J&F em suspender multas, a Camargo Corrêa e a Engevix também buscam rever cláusulas de seus acordos de leniência. Outras estudam entrar na fila de Toffoli. O ministro também anulou todas as provas que embasaram o acordo de leniência da Odebrecht, com a justificativa de que foram descumpridas exigências formais para cooperação internacional. Na decisão, em setembro de 2023, Toffoli classificou a prisão de Lula na Lava Jato como um dos “maiores erros judiciários da história do País”.
Nova Lava Jato a curto prazo é improvável, avalia professor
O professor de Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luciano Da Ros, avalia que a operação teve êxito nos primeiros anos, quando lançou mão de instrumentos investigativos que haviam sido incorporados à legislação, como os acordos de colaboração premiada.
Da Ros é especialista em estudos sobre o Judiciário e controle da corrupção e um dos autores do livro Brazilian Politics on Trial (Política Brasileira em Julgamento, em português), publicado nos Estados Unidos.
“A forma de fazer o acordo, com devolução de valores, me parece acertada. Ter uma força-tarefa dedicada, um juiz especializado, compartilhar informações entre os órgãos de investigação, como Polícia Federal, Receita, Coaf, é muito acertado”, registra.
Uma operação do porte da Lava Jato só foi possível porque o Brasil aperfeiçoou de forma gradual os mecanismos de combate à corrupção a partir da década de 80, segundo Luciano Da Ros. Por exemplo, melhoria nas leis de transparência, de licitação, de improbidade administrativa e de lavagem de dinheiro.
“Uma série de instrumentos foi sendo agregada ao longo do tempo e, aos poucos, eles adicionavam um tijolinho na edificação do sistema de integridade em nível federal”, compara.
“Os efeitos não eram sentidos de forma imediata. A Operação Lava Jato representou, do ponto de vista dessa trajetória, uma ruptura. Não era mais uma tentativa de uma melhoria gradual do controle da corrupção. Era uma tentativa abrupta, acelerada, muito intensa, usando, com método, o mecanismo de controle mais severo que existe na democracia, que é a prisão.”
Já em seu ocaso, em janeiro de 2021, a Lava Jato voltou às ruas para a fase 79, a última da força-tarefa. Da Ros avalia que uma nova investigação de tamanha envergadura contra a corrupção nos próximos anos é improvável. Ele afirma que a reação à operação teve como consequência mudanças legislativas que enfraqueceram o enfrentamento a desvios e fraudes na gestão pública.
A Operação Lava Jato representou, do ponto de vista dessa trajetória, uma ruptura. Não era mais uma tentativa de uma melhoria gradual do controle da corrupção. Era uma tentativa abrupta, acelerada, muito intensa, usando, com método, o mecanismo de controle mais severo que existe na democracia, que é a prisão
Luciano Da Ros, professor de Ciência Política da UFSC
O professor pontua alterações que desfiguram o texto original da Lei de Improbidade, a criação da Lei de Abuso de Autoridade, que inibe investigadores, e também mudanças em regras de compartilhamento de informações da Receita e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
“Os instrumentos de controle da corrupção no Brasil (hoje) são bem diferentes daqueles que existiam antes da Lava Jato. A Lei de Improbidade é muito menos forte do que existia. Existe uma celeuma se crime de lavagem de dinheiro, que tenha conexão com crime eleitoral, tem que ser julgado na Justiça Eleitoral ou na Justiça Federal”, aponta.
“Com esse afrouxar de controles, a gente volta a algumas práticas políticas que se imaginavam reduzidas. Como, por exemplo, o imenso poder dos relatores do orçamento.”
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