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Opinião | Há mais vida do que se pensa

Ou nos conscientizamos de que somos pequena parte – não necessariamente a mais importante – de um grande sistema, e que temos a nossa responsabilidade quanto a não continuarmos a destruí-lo, ou seremos artífices do apocalipse

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convidado
Por José Renato Nalini

Nossa formação é essencialmente antropocêntrica. Pensamos tudo a partir de nós mesmos. Algo que favorece o individualismo exacerbado, exteriorizado sob a forma de egoísmo, narcisismo e descaso para com o que não nos interessa diretamente.

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Mas há pensadores que tentam reverter essa tendência que prestigia os selfies e o endeusamento de si próprio. São os que respeitam a vida animal, a vida vegetal e outras espécies de vida.

Por exemplo: a cidade de Linhares, no Espírito Santo, foi uma das primeiras do mundo a reconhecer suas ondas como seres vivos. A Câmara Municipal concedeu personalidade jurídica às ondas junto à foz do Rio Doce, com o intuito de proteger sua forma física, seus ciclos ecológicos e sua composição química. A lei local também designou guardiões para representar essas ondas em questões públicas, para garantir a integridade de um dos maiores patrimônios ambientais da região.

Essa conquista é fruto de intenso labor de uma comunidade ecológica, na qual se destaca a advogada ambiental Vanessa Hasson, diretora executiva da ONG Mapas e especialista pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela conseguiu articular um trabalho que prosperou e foi exitoso, junto com surfistas, ativistas e moradores locais. Não é fácil superar a barreira conservadora da vetusta e às vezes anacrônica estrutura jurídica tradicional.

A luta começou em 2015 e, com a conexão trazida pela cientista, foi mais viável conferir consistência à tese, que foi bem sucedida narrativa jurídica. Não é novidade, pois iniciativas internacionais já reconhecem elementos naturais como sujeitos de direito. Há rios, florestas e mesmo árvores isoladas já consideradas sujeitos de direito ambiental e merecedores de proteção legal da mesma ontologia dos direitos incidentes sobre os humanos.

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Um precedente memorável foi o reconhecimento do Mar Menor, na Espanha, pioneiro a dispor de direitos próprios. Só que as ondas, parte do oceano, ainda não tinham esse status. A partir de agora, a população de Linhares tem maiores condições de proteger o ecossistema, sempre atingido com os efeitos da lama tóxica despejada no rio, após o rompimento da barragem de Mariana.

Essa tragédia ocorreu em 2015, quando houve ruptura da barragem de Fundão, em Minas Gerais. Milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério foram lançados no Rio Doce. Um desastre que afetou diversas cidades ao longo do rio e chegou à foz, em Linhares, no Espírito Santo.

Perderam-se vidas humanas, contaminou-se o ecossistema da região com metais pesados. O que impactou a fauna, a flora e as ondas da praia de Regência, conhecidas mundialmente pela prática de surf.

Entende Vanessa Hasson que essa lei representa uma conquista para o ambientalismo ético, tão desprestigiado em nossa República. Serve como ferramenta pedagógica, para despertar a população e fazê-la ousar e assumir a defesa de entes inermes. Essenciais à sadia qualidade de vida e reiteradamente sacrificados por nossa ganância que, não por acaso, rima com ignorância.

Reconhecer-se parte de um complexo sistema existencial, em que tudo interfere com tudo, e que rompido um só dos elos dessa cadeia, o sistema todo pode perecer, é uma lição que a humanidade está demorando muito a assimilar. Nossa interdependência em relação à natureza é parte de nossa experiência vital. Desconhecê-la apressa o fim dos tempos, o encerramento da aventura dos chamados “racionais” sobre a superfície deste planeta espoliado, maltratado e desrespeitado de todas as formas.

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Motivar as Câmaras Municipais para que editem diplomas análogos, é uma das maneiras de se formular um novo pacto com a natureza. Paralelamente, é essencial formar nova geração de juristas, que não hostilizem a tendência à ampliação do conceito de “ser vivo”. Isso para que não venham a ser consideradas inconstitucionais as leis locais que vierem a considerar sujeitos de direito coletividades de animais irracionais, rios, montanhas, florestas, cachoeiras, regatos, restingas, várzeas e outros presentes com os quais a Providência ofereceu aos humanos um ambiente natural saudável e garantidor de qualidade vital.

Ou nos conscientizamos de que somos pequena parte – não necessariamente a mais importante – de um grande sistema, e que temos a nossa responsabilidade quanto a não continuarmos a destruí-lo, ou seremos artífices do apocalipse. O extermínio total da experiência humana sobre o planeta Terra, muito antes do que a ciência o previra, mas resultante de nossa inconsciência e de nossa insensibilidade.

Acordemos: há mais vidas do que se costuma pensar. Há outras vidas, que também merecem respeito. Mais ainda, dependemos delas para continuar a existir.

Convidado deste artigo

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão
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