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Opinião | Hegemonia da desinformação e liberação do discurso de ódio na internet: retrocesso inaceitável

A anunciada supressão do modelo de “fact-checking” dará ensejo à proliferação da mentira, da fraude, da deturpação infamante da verdade e dos discursos de ódio e de intolerância, comprometendo, seriamente, ante a ausência de moderação de conteúdo, os valores básicos que regem a internet no Brasil

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convidado
Por Celso de Mello

O grave retrocesso recentemente anunciado pelo CEO da META ( empresa fundada originalmente como Facebook), Mark Zuckerberg, consistente no encerramento do sistema de verificação de fatos (“fact-checking”), terá como consequência inevitável a irresponsável liberação do discurso de ódio e de intolerância em suas redes sociais (gesto que foi tão infamemente celebrado pela extrema-direita em nosso País).

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Esse anúncio mereceu incisivo pronunciamento do Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que corretamente enfatizou a necessária submissão das “big techs” ao princípio da “rule of law”, vale dizer, ao postulado da supremacia da Constituição e das leis da República!

Os fatos claramente demonstram quão essencial se revela a necessidade de regulação das “big techs, notadamente em face da primazia da soberania digital de nosso País, que constitui uma das múltiplas dimensões em que se projeta a soberania política do Estado brasileiro!

A anunciada supressão do modelo de “fact-checking” dará ensejo à proliferação da mentira, da fraude, da deturpação infamante da verdade e dos discursos de ódio e de intolerância, comprometendo, seriamente, ante a ausência de moderação de conteúdo, os valores básicos que regem a Internet no Brasil, inscritos na Lei 12.965/2014 (“Marco Civil da Internet”), e cuja observância deve prevalecer para que a rede mundial de computadores (“World Wide Web” ou WWW) propicie a todos um espaço digital democrático e seguro!

Os ambientes digitais tornar-se-ão locais em que, sob o falso (e enganoso) pretexto de proteção à liberdade de expressão, praticar-se-ão abusos no exercício dessa franquia constitucional e cometer-se-ão fraudes e ilegalidades, fragilizando-se (ou até mesmo suprimindo-se) direitos e liberdades fundamentais que protegem o patrimônio moral das pessoas, a integridade da ordem jurídica do Estado e a defesa de minorias e de grupos vulneráveis!

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Com o virtual esvaziamento do dever de moderação, tornar-se-á possível desobedecer a regra básica (e incontornável) de que todos os usuários devem ser tratados com dignidade e igualdade, para impedir que as plataformas de conteúdo liberem ou facilitem, de modo seletivo (e, portanto, não igualitário), a disseminação de “fake news” e de outras manifestações que vulnerem a legislação nacional, notadamente a de índole penal, inclusive a circulação, em caráter preferencial, de outros textos e imagens veiculadores de tratamentos degradantes, ofensivos, preconceituosos, insultuosos e discriminatórios em detrimento das pessoas em geral e, em particular, de grupos minoritários ou de comunidades vulneráveis!

Insista-se, pois, no seguinte ponto: a Lei n. n° 12.965, de 23 de abril 2014, que instituiu o “Marco Civil da Internet”, tem como seu precípuo objetivo viabilizar tratamento isonômico que impeça, entre outras, a prática abusiva do direito à livre expressão (o abuso de direito constitui ato ilícito, como prescreve o artigo 187 do Código Civil) e que permita, segundo padrões compatíveis com o ordenamento constitucional, a comunicação democrática entre os usuários da rede, vedando-se, por efeito consequencial, qualquer tratamento discriminatório ou preconceituoso, por razões étnico-raciais, de nascimento, de orientação sexual e de identidade de gênero, de religião, de fortuna ou de posição social, proibidas, enfim, distinções de qualquer natureza, tudo em ordem a neutralizar atos que desfavoreçam ou que desrespeitem, notadamente, minorias ou grupos vulneráveis!

Para que a Internet seja efetivamente livre e aberta, torna-se essencial que as “big techs” (e não apenas elas) respeitem, considerado o ordenamento positivo nacional, o primado da soberania política, inclusive daquela que se projeta no plano digital, do Estado brasileiro, observando, de modo incondicional, a supremacia dos postulados constitucionais por ele promulgados, a significar que existem, nesse âmbito, limites éticos e jurídicos inultrapassáveis pelas plataformas digitais e que por estas não podem ser transgredidos!

Enfim: fragilizar, quando não suprimir, o poder de moderação de conteúdo, com a eliminação da checagem de fatos, importa em favorecer a disseminação do discurso de ódio, em fomentar a intolerância, em comprometer os princípios e diretrizes que regem as redes sociais e, ainda, em frustrar as atividades das plataformas digitais, destinadas, por imperativo legal, a fornecer serviços e espaços seguros e íntegros no âmbito da Internet , obstando-as, indevidamente, em razão do afastamento do modelo de “fact-checking”, que elas, no cumprimento de seus deveres legais, possam desempenhar a legítima incumbência de conferir eficácia real à tutela dos direitos fundamentais, de proteger o regime democrático e de tornar efetiva a promoção do pluralismo de ideias, impedindo, quanto a tal aspecto, que o arbítrio das maiorias asfixie, injustamente, em contraposição ao princípio democrático, os direitos e liberdades fundamentais das minorias e dos grupos vulneráveis.”

Convidado deste artigo

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Celso de Mello
Ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, biênio 1997-1999. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
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