A Inteligência Artificial (IA) já é realidade em tribunais de todo o País. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 53 tribunais utilizam a ferramenta com diferentes objetivos, como a automatização de processos burocráticos, a busca por uma maior eficiência e celeridade no processamento de documentos e até a redução do tempo de tramitação dos processos judiciais.
Ao todo, são 148 projetos de IA no Judiciário brasileiro, abrangendo os mais diferentes ramos da Justiça: estadual (64), eleitoral (21), do trabalho (17), federal (14) e tribunais superiores (32).
O avanço dos modelos, que aportaram no Judiciário muito antes da criação do chatGPT e dos sistemas chamados regenerativos, levou o CNJ a instituir, no dia 30 de novembro, um grupo de trabalho somente para avaliar a aplicação e impacto da IA nos tribunais brasileiros.
O CNJ diz que o Judiciário brasileiro está na ‘vanguarda mundial’ quando se trata de tecnologia da informação e comunicação. “Podemos dizer que o nosso Poder Judiciário, apesar das grandes possibilidades de evolução, é o mais tecnológico do mundo, na digitalização integral, no processo eletrônico e agora também na inteligência artificial”, ressaltou o órgão, em nota.
O investimento em tecnologia é um dos pilares da gestão do ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ. Desde que assumiu o cargo, em setembro, Barroso já iniciou diálogos com empresas para tratar de soluções de inteligência artificial que possam agilizar os trabalhos Judiciário.
A avaliação é a de que a Justiça brasileira precisa estar a par do estado de desenvolvimento das IAs, vez que soluções usadas pelos tribunais são produzidas somente pelos técnicos dos órgãos do Judiciário.
Para acompanhar o desenvolvimento de soluções de IA no Judiciário, o CNJ instituiu, em 2020, o Sinapses, uma plataforma nacional de armazenamento, treinamento supervisionado, distribuição e auditoria dos modelos de inteligência artificial.
À época, o órgão também estabeleceu parâmetros para implementação e funcionamento das IAs nos tribunais. De acordo com o Conselho, as iniciativas devem seguir uma série de princípios, como o respeito aos direitos humanos, o da não discriminação, o da publicidade e transparência e o da governança e qualidade.
IA utilizada por tribunal de Goiás reduziu problemas em decisões conflitantes e anulações
Algumas soluções, por exemplo, identificam e agrupam processos que tratem da mesma “causa de pedir” (conjunto de fatos e direitos que fundamentam o pedido do autor em uma ação) e a tese sustentada, como é o caso da Berna, desenvolvido pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Ela analisa os textos das petições e começou a ser desenvolvida em 2018. Com o uso do sistema, a Corte estadual viu redução em problemas de decisões conflitantes e de anulações em razão do “princípio do juiz natural” (o juiz que é competente para julgar o caso, que muitas vezes já analisava uma demanda similar). O modelo é considerado referência área no Judiciário, já sendo utilizado em outros sete Estados.
A Berna inclusive faz movimentações automáticas no processo judicial, gerando documentos com as informações coletadas nos sistemas do TJGO e remetendo as mesmas para os magistrados. Ela lê todas as petições que aportam no tribunal com todas as que já tem em sua memória. Hoje a plataforma já conta com mais de 16 mil grupos de processos similares reconhecidos, afirma Antônio Pires, diretor de Estatística e Ciência de Dados do TJGO.
“Teve um problema recente aqui que teve uma festa com mais de 50 mil pessoas que não aconteceu. Elas podem todas entrar com pedidos judiciais. Então a causa de pedir é a mesma, a tese jurídica provavelmente é muito próxima. Então a Berna consegue agrupar isso na entrada dos processos. E quando ela faz isso, ela indica uma série de questões relevantes para o magistrado”, explica Pires.
A Corte goiana atualmente trabalha em uma inteligência artificial que visa simplificar a linguagem das sentenças. O objetivo é tornar os processos mais acessíveis, com a geração automática de documentos que resumam as ordens dos magistrados estaduais. A expectativa é a de que o sistema seja implantado em março do ano que vem
Ferramenta utilizada em Pernambuco auxilia na identificação e combate de demandas predatórias
Já no Tribunal de Justiça de Pernambuco, os esforços foram no sentido de desenvolver uma ferramenta que auxiliasse na identificação e combate às chamadas demandas predatórias – quando o Judiciário é acionado de maneira abusiva, com ações produzidas em massa. A solução vasculha os sistemas da corte estadual e passa informações qualificadas para os juízes, sinalizando, por exemplo, se há muitos processos movidos por um mesmo advogado, com a mesma causa de pedir e os mesmos documentos.
De acordo com o juiz Faustino Macedo, criador do Bastião, a ferramenta possibilitou julgamentos mais rápidos e com maior segurança jurídica, vez que é conferido o mesmo tratamento a demandas similares – vez que o sistema também agrupa processos repetitivos.
Já com relação às demandas predatórias, o magistrado explica os benefícios do uso da IA ressaltando o impacto do uso da justiça para o ‘lucro’. Ele cita o caso de uma comarca do interior do Estado, de Araripina, que recebeu 17 mil ações repetidas. “Como a gente consegue dar uma resposta rápida para a sociedade numa bagunça dessa?”, questionou.
O Bastião consegue sinalizar para o magistrado a lista de processos com as características de demanda predatória, cabendo ao juiz realmente verificar se é o caso – com base nas informações levantadas pela plataforma e também em uma experiência. “Bastião diz, por exemplo, esse processo está classificado como potencialmente predatório porque tem 15 documentos que foram usados em outras 1,7 mil ações. Esse mesmo advogado trouxe 3 mil demandas iguais para o Judiciário, sendo que apenas 20% foram julgadas no mérito”, explica Macedo. Segundo o magistrado, antes esse trabalho de ‘detetive’ era realizado pelos próprios juízes.
A plataforma ainda conta com uma espécie de rede social, para que os magistrados consigam compartilhar as informações, colhidas por Bastião, com juízes de outras comarcas e varas. Macedo diz que o sistema de IA já identificou processos que tem 7 mil reusos de documentos, ajuizados por um advogado que já foi punido por demanda predatória em outro Estado.
Diminuição de tramitações de processos judiciais
Antes de Bastião, o Tribunal de Justiça de Pernambuco já contava com o auxílio de Elis, uma IA que ajuda a identificar e fazer a análise inicial de processos de execução fiscal, um grande gargalo da Corte. Na primeira unidade em que ela foi aplicada, os magistrados demoravam um ano e meio para analisar 80 mil processos e dar prosseguimento. Depois da Elis, tal prazo caiu para 15 dias, diminuindo em mais de um ano a tramitação de um processo de execução.
Macedo explica que o desenvolvimento de inteligências artificiais no Judiciário parte dos problemas identificados pelas Cortes. Segundo o magistrado, está claro que a IA é um investimento necessário para identificar obstáculos da Justiça. “Não dá para pensar em resolver com um estilingue, quando a gente vê que todo mundo está com metralhadora. Os escritórios de advocacia, todo mundo se utiliza de IA”, ressalta.
Macedo afirma que uma das soluções que já está no radar do Tribunal de Justiça de Pernambuco – e também chamou atenção do ministro Luís Roberto Barroso – está ligada ao uso de IAs generativas para apoiar a minuta de decisões judiciais, indicando caminhos para os magistrados, com base em modelos de sentenças dadas pelos mesmos. A plataforma auxiliaria no tempo de julgamento das ações. Há relatos de magistrados que já usam, em todo o País, de forma isolada e independente, o chatGPT para conseguir ‘zerar os gabinetes’.
Soluções da IA podem substituir o trabalho humano?
Sobre os ‘riscos’ ligados ao uso da IA no Judiciário, Macedo diz acreditar que as soluções nunca vão substituir o trabalho humano, “de sentir, ter razoabilidade”. “Sendo bem utilizada como apoio, não vejo nenhum problema. A gente já usa, na prática, assessores. Olhando bem olhado e checando bem checado não vejo problema. Acho que o problema está mais no ser humano, que quiser se utilizar sem prudência, ética, aprofundamento, olhar humano. A nós e dado o dever constitucional de julgar, não transferindo isso para o robô, mas ele se dando como apoio, não vejo problema”, pondera.
O advogado Bruno Guerra de Azevedo, especialista em direito digital, ressalta a importância de que a inteligência artificial seja usada como uma ferramenta dos magistrados, aos quais cabe verificar as informações colhidas, atuando como uma espécie de ‘filtro’. Além disso, ele destaca a necessidade de atualização e controle constante das bases de dados, para que os dados coletados não reproduzam entendimentos ultrapassados e até vieses preconceituosos, por exemplo.
Azevedo indica que em outros países, como a Estônia, a IA é usada em processos de juizado especial cível, analisando as causas e as passando para que o juiz somente chancele a decisão. “Caso a gente eventualmente adote essa ferramenta, isso é importante, ter um ser humano verificando o que aquele robô decidiu”, sinaliza. O especialista citou estudos que identificaram decisões proferidas por inteligência artificial com cunho racista, vez a base de dados estava ‘contaminada’.
“A inteligência artificial não conseguiu estar madura o suficiente para ter aquelas soft skills (habilidades comportamentais) naturais do ser humano, que só ele possui. Robô não tem emoção, não consegue entender nuances de linguagem, por exemplo”, diz. “Não é possível entregar simplesmente um caso para a AI decidir”.
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