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Opinião|Igualdade de gênero, Judiciário e democracia: o perigo de uma história única

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Por Carolina Costa Ferreira* e Noemia Porto*

É necessário reconhecer a importância de momentos que possuem a força de fazer história.

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O regramento pelo CNJ de uma política judiciária de alternância de gênero no preenchimento de vagas para os colegiados da segunda instância do Poder Judiciário, é um desses momentos.

Trata-se da possibilidade de instituição de política provisória, ação afirmativa e transformativa, para a correção histórica da desigualdade de gênero, que contará com o devido monitoramento do Conselho e cessará quando for possível reconhecer que a igualdade se apresenta como uma realidade no Judiciário brasileiro.

Carolina Costa Ferreira e Noemia Porto Foto: Divulgação e Arquivo pessoal

O tema não é inédito. As discussões, desde 2018, ainda sob a Presidência da Ministra Cármen Lúcia, quanto à necessidade de participação feminina no Poder Judiciário, tiveram como justificativa a análise de dados da realidade, que apontam no sentido da desigualdade, da falta de representatividade, em contrariedade ao imperativo das previsões constitucionais e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (Resolução nº 255/2018, que instituiu a política nacional de incentivo à participação feminina no Poder Judiciário). A partir desses dados, é inviável, de boa-fé, naturalizar a ausência de mulheres em alguns tribunais do país ou a sua presença minoritária em muitos deles. As informações apresentadas no voto da Conselheira Salise Sanchotene, na última terça-feira, no plenário do CNJ, demonstram tal disparidade.

No contrafluxo da mudança necessária, há a defesa de que as alterações apenas poderiam ocorrer com a aprovação de uma lei, em sentido estrito. O argumento é supostamente técnico e neutro. Importante notar o esforço no sentido de questionar a competência do Conselho não foi apresentado quando benefícios foram reconhecidos à magistratura a partir da leitura principiológica da Constituição (como é o caso da Resolução nº 133/2011, que versa sobre a simetria entre a Magistratura e os membros do Ministério Público em relação a verbas e vantagens), ou quando foi estabelecida a oportuníssima política de cotas para pessoas negras (Resolução nº 203/2015). Afinal, benefícios para a magistratura e a política de cotas não alteram as posições atuais (status quo) do Judiciário. A política de cotas, especificamente, está direcionada aos problemas no ingresso da carreira, etapa distante das listas para promoção aos tribunais, que atualmente contam com a majoritária presença de homens brancos.

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Para pensar desafios constitucionais, acaso fosse pertinente o argumento de uma análise estrita de texto, a competência do CNJ decorre da Constituição (art. 103-B), em relação à instituição de políticas públicas judiciárias. Para além disso, a criação do Conselho pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004 foi resultado de amplo debate político, social e jurídico, no âmbito da Reforma do Poder Judiciário, justamente porque se reconhecia a necessidade de aperfeiçoamento de suas estruturas, para que estivessem voltadas aos primados da democracia, transparência e controle.

Chimamanda Ngozi Adichie, em vídeo muito conhecido chamado “O perigo de uma história única”, explica que “é assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão”. O Judiciário brasileiro, hoje, conta uma história única: masculina, branca e heteronormativa, especialmente em fotos de colegiados completos de segundo grau ou em galerias de fotos de ex-Presidentes de Tribunais. A história única é incômoda e, infelizmente, facilmente compreendida.

Adichie continua: “é impossível falar de uma história única sem falar em poder. Como as histórias são contadas, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa”. Segundo Adichie, a palavra nkali, em igbo, significa “ser maior do que o outro”.

A igualdade não é uma questão de tempo. Nunca foi. É um tema que exige coragem para a mudança e para interferir nas estruturas de poder.

O CNJ, agora sob a presidência da Ministra Rosa Weber, em tal debate, não altera critérios constitucionais de alternância entre antiguidade e merecimento para a promoção de magistrados. Promove, isto sim, uma releitura constitucionalmente adequada desses critérios para compatibilizá-los com a urgência na realização da igualdade de gênero que não se resolve apenas no ingresso (que ainda é problemático), mas também na garantia de acesso às demais posições de poder das mulheres magistradas. Reescreve-se a história única, dando a ela diferentes caminhos, diferentes possibilidades de escolha de quem terá o poder de revisar decisões de primeira instância. Mudam-se as estruturas de poder e, com isso, ampliam-nas a outros corpos, outras vozes, a possibilidade de contar diferentes histórias.

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A Constituição, no tema, não carrega nenhum silêncio eloquente acerca dos critérios de gênero para a análise da antiguidade e do merecimento na magistratura brasileira. O texto (novamente ele) não precisaria trazer essa previsão porque a repetição seria desnecessária. A dimensão democrática de direito, inaugurada em 1988, fez clara opção pelo valor da igualdade – material, de não ser “maior do que o outro” – como forma de respeito às diferenças e de inclusão permanente dos grupos não devidamente representados nas esferas públicas e privadas. Uma igualdade desafiadora, que não diz respeito a cromossomos, genéticas ou naturalizações, mas, sim, que se contrapõe às estruturas que acomodam práticas de prestígio e privilégio a uma forma de magistratura: do homem, branco, católico e pai (tal como consta no Perfil Sociodemográfico da magistratura brasileira divulgado pelo CNJ em 2018).

A diversidade e a representatividade não são um benefício para as mulheres, mas uma condição para a democratização do Judiciário brasileiro. A promoção da igualdade de gênero que está sendo discutida no CNJ consiste em mais uma oportunidade de não se ater a uma história única.

*Carolina Costa Ferreira, advogada. Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professora universitária (IDP e CEUB)

*Noemia Porto, juíza do Trabalho. Doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professora universitária (UniProcessus e IDP). Ex-presidente da ANAMATRA

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