No texto anterior, da presente sequência temática sobre “impeachment”, que publiquei recentemente neste espaço, havia parado as reflexões no ponto de sugerir que, no sistema brasileiro, as decisões que marcam o processo de impeachment são eminentemente políticas. Retomo o ponto a partir daí.
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Eu vinha afirmando que, no julgamento do impeachment, ao lado da maior margem política – diga-se: discricionariedade – do julgador ao aceitar e processar a denúncia, o ponto mais relevante a caracterizar a natureza política está na deliberação: o ato de vontade em que consiste norma jurídica individual e concreta que condena ou absolve o presidente da República tem a sua validade aferível por certos critérios de legalidade, dentre os quais não figura a verificação dos motivos da decisão.
E nem existe motivação – explicitação dos motivos – que permita tal verificação. Aliás, ainda que cada integrante do colegiado julgador decline um motivo ao proferir seu voto, ele é irrelevante para a validade da norma jurídica em que consiste a decisão condenatória ou absolutória do processo.
Enfim, o que se quer sustentar é que o impeachment, no caso do direito constitucional brasileiro, integra o modo de ser de seu específico sistema presidencialista, implicando, sem qualquer contradição: (i) não apenas maior margem discricionária de apreciação, por parte do órgão julgador, quanto à existência de suficientes elementos factuais para a caracterização da materialidade do ilícito, (ii) mas também, e especialmente, um julgamento de mérito que possui natureza política, ou seja, resultando em uma decisão de condenação ou absolvição que dispensa motivação e cujos motivos são insindicáveis (não havendo nenhum outro órgão que controle sua validade).
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No entanto, ao mesmo tempo em que se promove a atual discussão sobre o impeachment no Brasil, vivencia-se uma fase de sobrevalorização do Poder Judiciário e do controle jurisdicional-judiciário da atividade política, tanto a exercida pelo Poder Executivo como a exercida pelo Poder Legislativo.
A regra da impossibilidade de exclusão da apreciação, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, art. 5°, XXXV) é interpretada no Brasil como a exclusividade do Poder Judiciário para o exercício da função jurisdicional, ou seja, a função de dar a palavra definitiva sobre a aplicação do direito a casos concretos ou mesmo sobre a constitucionalidade ou legalidade de atos normativos abstratos.
Contudo, por meio de uma leitura ampliativa da noção do que sejam propriamente “direitos”, a merecerem tutela jurisdicional, presencia-se no Brasil uma interferência crescente e potencialmente problemática da esfera técnico-jurídica (personificada pelo Poder Judiciário) em detrimento da esfera democrático-política (personificada pelos desacreditados Poderes Executivo e Legislativo).
Problemática, afirma-se, porque é salutar ao equilíbrio social do país o convívio harmônico de uma dimensão política com uma dimensão jurídica da vida em sociedade.
Não sendo, entretanto, o caso de aqui discutirem-se as leituras neoconstitucionalistas do direito, a crítica ao ativismo judicial e o fenômeno da judicialização da política e da politização da justiça, concentre-se o argumento no tema do impeachment.
Desse modo, como corolário do quanto se afirmou neste ensaio sobre o caráter político do impeachment tal como definido pela própria Constituição, seria importante que se reconhecesse efetivamente que, ao julgar o impeachment, o tribunal em que se transformam a Câmara dos Deputados e o Senado Federal (cada qual cumprindo seu papel num processo complexo) exerce função jurisdicional.
Trata-se de uma exceção, posta constitucionalmente, à regra da unicidade da jurisdição (nas mãos do Poder Judiciário). Neste caso, quem dá a palavra definitiva sobre a absolvição ou a condenação do presidente da República por crime de responsabilidade é esse tribunal parlamentar – e nenhum outro órgão, nem o Supremo Tribunal Federal.
É certo que já se consolidou uma prática no Brasil pela qual o Supremo Tribunal Federal aprecia a legalidade do processo de impeachment. E, ao fazê-lo – ao menos na opinião do autor deste texto – vai além do que deveria, fixando parâmetros de atuação do tribunal legislativo que não estão previstos na Constituição Brasileira ou Lei n. 1.079/50 e que, portanto, deveriam ser definidos exclusivamente por decisão regimental do Poder Legislativo.
Todavia, importa enfatizar a impossibilidade de revisão – nem por argumento de direito, nem por matéria probatória – pelo Supremo Tribunal Federal (ou por qualquer outro órgão), do mérito da decisão política – condenatória ou absolutória do presidente da República – proferida pelo Senado Federal em processo de impeachment.
Concluindo esta sequência de textos, vale uma palavra final para observar que a tese ora sustentada – da natureza política do impeachment – não apenas tem sentido teórico-jurídico, como reforça a importância da valorização dos processos sociais essencialmente políticos para a consolidação de um regime democrático.
Aliás, os dois processos de impeachment vividos no Brasil – em momentos tão próximos e ambos inseridos no maior período contínuo de índole predominantemente democrática da experiência brasileira –, com preservação das instituições e prosseguimento da vida social sem ruptura da ordem constitucional, induzem a pensar, em reforço à tese central de que a figura do impeachment tende a ganhar uma dinâmica muito peculiar no Brasil, estabelecendo um específico e legítimo arranjo do sistema presidencial e do sistema de independência e harmonia dos Poderes, a que se refere o artigo 2º da Constituição.
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