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Opinião|Imposição sexual: por que a vítima se cala?

Quando uma pessoa faz uma denúncia de assédio ou qualquer crime sexual, vai se deparar com diversos tipos de agressão e descrédito, tentando negar e minimizar a alegação feita. Talvez o efeito mais cruel seja a própria pessoa que sofreu a agressão duvidar se aquilo ocorreu ou foi “um exagero” de sua parte

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convidado
Por Marco Antonio Spinelli

No anteprojeto do novo Código Penal, podemos fazer uma distinção entre Assédio e Molestamento Sexual: O Assédio é uma investida sexual, repetida ou não, onde alguém faz insinuações, convites e tentativas de aproximação afetiva e sexual com alguém que não dá abertura e pede, repetidamente, que aquele comportamento seja interrompido. É uma tentativa de aproximação que causa desconforto a quem recebe, mas não tem uma imposição física no ato.

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Já o Molestamento Sexual se caracteriza quando alguém comete o que o código chama de “ato libidinoso”, como tocar, apalpar e tentar forçar um contato sexual sem a reciprocidade da outra pessoa. Recentemente houve um caso rumoroso em prédio comercial de alto padrão, em Fortaleza, com a imagem filmada do homem tocando as mãos e depois os seios de uma moça no elevador. Ela chorando copiosamente. Ele saiu indiferente ao efeito do seu ato. A imprensa chamou isso de Assédio. Está errada. Isso foi um Molestamento, uma Agressão Sexual. Os advogados do homem alegaram que ele apenas tentou “alertá-la aos riscos do tabagismo”. Como é que é, cara pálida? Dá para repetir?

O presidente Lula demitiu seu ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) no começo de Setembro por suposto comportamento de assédio sexual, documentado e vazado por uma ONG, Me Too, que o ministro defenestrado promete processar. Mas rumores sobre seu comportamento circulam há meses pelos cantos de Brasília. A Imprensa noticiou que sua colega e ministra Anielle Franco (Igualdade Racial) também sofreu os tais “atos libidinosos”, perpetrados pelo colega, com contatos e atos físicos não consentidos. Mais impressionante foi o relato de uma professora, que relatou ter sido bolinada “com vontade” debaixo de uma mesa em evento onde Silvio Almeida sentou-se a seu lado, em 2019. Isso não foi Assédio. Se comprovado, é bem pior que um assédio.

Quando uma pessoa faz uma denúncia de Assédio ou qualquer crime sexual, vai se deparar com diversos tipos de agressão e descrédito, tentando negar e minimizar a alegação feita. Talvez o efeito mais cruel seja a própria pessoa que sofreu a agressão duvidar se aquilo ocorreu ou foi “um exagero” de sua parte. Como no caso do agressor de Fortaleza, a reação é de Negação: “Estava só ajudando a moça”, junto com a minimização - ela que interpretou mal a preocupação do homem com a sua saúde. Finalmente, a manobra antiga de culpar a vítima: “ela que estava com vestido curto”; “ela que provocou” e assim por diante.

Quem já leu meus textos sabe da minha implicância com a cultura Woke de vitimização e cancelamentos de pessoas e biografias por suposto comportamento inadequado, ou de “direita”. Esse texto fala do assunto pelo ângulo de quem sofre a violência. O ângulo da vítima, que ainda ouve que deve “parar de mimimi”. Um ataque que a própria ministra recebeu é a divulgação de troca de mensagens com Sílvio, de Agosto para cá, mostrando que eram amigos. A insinuação é clara: se eu estava fazendo isso, por que ela é simpática nas mensagens? Aí eu resolvi meter a minha colher nesse assunto.

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As pessoas que sofrem abusos graves relatam com estranheza uma culpa, por não ter reagido, não ter gritado, não ter esmurrado o agressor, o assediador. Como a moça no elevador, que podia ter dado um chute bem colocado no homem que apalpava seus seios. Ela apenas congelou e chorou desconsolada. Mas botou a boca no trombone depois, ao contrário de muita gente que prefere apenas seguir em frente e esquecer aquilo. Até para não passar pela cascata de Negação e Culpabilização que, com certeza, virá. Mas, alguém pode perguntar: Por que a professora demorou quase cinco anos para falar sobre o assunto? Por que outras denúncias demoram anos ou décadas para vir à tona?

São vários os mecanismos, mas vou destacar dois muito importantes: o Congelamento e a Dissociação.

Diante de uma situação de ataque ou violência, nosso Cérebro pode entrar em modo de Luta ou Fuga, o que pode fazer uma pessoa correr ou partir para cima de um agressor segurando uma arma. A resposta de Congelamento, ou Freezing, é a da moça no elevador, ou da professora de Santo André: não consegue mexer um músculo, só congelar. Depois de um tempo, pode se perguntar: por que não revidei? Porque seu Cérebro, as áreas que processam o medo, não deixaram. Bloquearam qualquer reação.

Outro mecanismo é a Dissociação. Diante de uma situação de risco, que não tem como fugir, ou reagir, a mente pode cindir a experiência, para não ter contato com o estresse extremo: é como se a vivência fosse colocada numa gaveta, para ser vivida em outra ocasião. Essa é a Dissociação. Algumas vezes, a experiência nem é lembrada. Já tive casos onde a verdade veio à tona algumas décadas depois do ocorrido. A Memória é repelida e isolada, como um corpo estranho, nas profundezas de nossas redes neurais. No futuro, essas memórias encapsuladas podem dar origem a transtornos psiquiátricos severos, como depressões graves, alcoolismo e abuso de drogas.

Esse é o mecanismo que isola a memória do abuso. Quando o abusador é denunciado, temos uma enxurrada de novas denúncias, seja porque a pessoa se sente amparada pelas outras vítimas, seja porque a memória retorna com uma intensidade devastadora e não pode mais ser suprimida. Por isso as vozes que se levantam todas em uníssono. A memória dissociada volta berrando.

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O trabalho com o Trauma é uma das vertentes mais potentes na pesquisa Psiquiátrica e Psicológica. Entrevistas padronizadas sobre experiências adversas e traumáticas na infância ou em qualquer período da vida estão sendo espalhadas para profissionais de saúde, e não apenas da área Psi, como Psiquiatras e Psicólogos. Espero que, com o tempo, seja da grade de formação das faculdades.

É uma questão importantíssima de saúde pública, e que bom que está sendo cada vez mais endereçada. Fatos como esse dão uma visibilidade dolorosa ao assunto.

Agora, fica uma última e impertinente pergunta: não fosse o grito de um Ministra de Estado, a reação teria sido assim rápida?

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Marco Antonio Spinelli
Médico, com mestrado em Psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress, o coelho de Alice tem sempre muita pressa”. Foto: Arquivo pessoal
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