Todo início de ano letivo, as famílias de crianças com deficiência e neurodiversas precisam enfrentar um ciclo de luta e reivindicações junto às escolas para que seus filhos tenham acesso aos recursos de que necessitam para aprender.
O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) é claro: toda criança "tem direito à educação", ou seja, à aprendizagem efetiva, o que não se confunde com frequentar a escola somente. Mas, apesar dos avanços na legislação, muitos alunos com necessidades específicas de aprendizado ainda têm direitos educacionais apenas no papel, restando a suas famílias -- a minha entre elas como mãe de um adolescente com deficiência intelectual -- enfrentar as barreiras que impedem nossos filhos de ter acesso à educação de fato.
A mais comum dessas barreiras ainda é a negativa de matrícula. Apesar de proibida por lei, segue como realidade em todo Brasil, seja quando a escola diz não estar preparada para acolher crianças com deficiência, ou nas ocasiões em que a matrícula é recusada sem cerimônia. Mesmo nos casos em que a criança é aceita, não raro, poucos ambientes escolares contam com professores, assistentes educacionais, mediadores e profissionais de apoio, como psicólogos e terapeutas ocupacionais com formação adequada em educação inclusiva. Também faltam materiais adaptados e salas de recursos equipadas e com gente capacitada para oferecer à criança um ensino pensado a partir de sua individualidade, maneira de aprender e, principalmente, suas potencialidades. Reitero: no Brasil, essa estrutura educacional necessária à inclusão de alunos com deficiência já é assegurada como direito na legislação, não devendo ser, portanto, vista como algo excepcional, mas, sim, a realidade a ser buscada em todas as escolas públicas e privadas.
Mesmo nas instituições de ensino com experiência inclusiva, com corpo docente de boa vontade, o início de cada ano letivo ou mudança de ciclo escolar são sempre épocas de tensão para estas famílias. Nessas situações, alunos com deficiência geralmente têm de lidar com novos professores, que podem estar ou não preparados para liderar na sala de aula um processo de inclusão. As crianças também vão ter de lidar com novos colegas, vindos de experiências formativas que podem ter ou não valorizado a diferença, de modo que não raro as famílias precisam se preocupar não só com a dúvida de a escola aplicar proposta pedagógica condizente com as necessidades de suas crianças e adolescente, mas também com a sociabilidade ou mesmo com a integridade física de seus filhos e filhas.
A falta de compreensão do que seja uma experiência inclusiva infelizmente não se restringe às escolas. Pode ser vista também no ambiente de trabalho, particularmente com a inclusão de pessoas com deficiências (PcD), que, já há alguns anos, têm em lei o direito à reserva de 2% a 5% das vagas nas empresas brasileiras com mais de 100 funcionários. Novamente no caso das PcD, embora o acesso à vaga de trabalho seja assegurado por lei, também se vê a mesma negativa tanto da vaga, quanto da inclusão.
Dados do Ministério do Trabalho obtidos pela revista Transite por meio da Lei de Acesso à informação dão conta que o órgão atuou no ano de 2016 mais de 200 empresas somente na cidade de Belo Horizonte por descumprirem a Lei de Cotas (8.213/91). O dado é antigo e, infelizmente, um dos mais recentes disponíveis, mas, ao ser obtido com dificuldade, via meios legais, dá uma ideia do tamanho do problema. Isso porque revela que a maioria das empresas autuadas na terceira maior cidade brasileira ainda prefere pagar as multas -- na casa dos milhões, diga-se -- ou questioná-las na Justiça em vez de investir na contratação e na inclusão de PcD, prática que ocorre em todo o país.
Mesmo entre as que contratam, não é incomum haver segregação ao invés de inclusão efetiva. Muitas falham na construção de um ambiente inclusivo, tolerante e respeitoso com as diferenças, que garanta aos profissionais com deficiência os recursos necessários para a aprendizagem e realização do trabalho e que vejam neles suas potencialidades antes de suas limitações. Um dos exemplos prevalentes ainda é a falta de acessibilidade de vários tipos - física, comunicacional ou mesmo atitudinal.
A correlação de situações excludentes e segregacionistas, no mundo do trabalho e no ambiente escolar, não são ao acaso. São sintomáticas de sociedades que precisam entender e praticar a inclusão em todas as suas esferas, o que muito bem pode e deve acontecer na escola, o primeiro espaço de sociabilidade, além de um lugar onde a inclusão não só é necessária, como também pode ser vivenciada de fato e irradiar para toda sociedade.
O debate aqui proposto ainda se faz necessário para que sociedades se tornem inclusivas e não permitam que prosperem as barreiras explícitas ou veladas atualmente a impedir crianças e adultos com deficiência de estudar e trabalhar.
Infelizmente, vivemos um tempo em que o óbvio precisa ser dito e repetido. Então que se diga: o direito de aprender e de trabalhar são inegociáveis, e assegurá-los deve ser um dever ético de toda a sociedade.
*Letícia Rodrigues é consultora especializada em diversidade e inclusão e sócia-fundadora da consultoria Tree Diversidade
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