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Opinião | Inteligência artificial generativa e Justiça plural

Equidade racial sempre, paridade em tudo e sustentabilidade social devem compor o trilema de um tempo em que máquinas sirvam pessoas e as interações humanas revelem experiências reais e autênticas. O dever de cuidado e o poder de cautela filtrarão tais aplicações para eliminar ou até mesmo desligar o algoritmo

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convidado
Por Edilene Lôbo

O Supremo Tribunal Federal lançou o Módulo de Apoio para a Redação com Inteligência Artificial no encerramento de 2024, batizado com o acrônimo MARIA, como que fechando uma era. MARIA é um produto tecnológico que veio para remodelar a confecção de resumos de votos dos Ministros, editar relatórios de recursos e efetuar análise de Reclamações, espécies de ações originárias destinadas a preservar a autoridade de decisões do próprio STF.

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Esse sistema é estruturado em algoritmos, tal como um conjunto de instruções em linguagem computacional a ser seguido para realização das tarefas pretendidas, alimentado por dados originários, associados a outros fornecidos previamente. A Inteligência Artificial Generativa, IAG ou IAgen, é o aperfeiçoamento do processamento da linguagem natural pelos computadores e interage com a pessoa usuária em velocidade impressionante, sugerindo textos, imagens, áudios e vídeos.

Como se nota, o sucesso desses produtos é dependente dos dados apresentados, implicando dizer que sem estrutura de captação, armazenamento e processamento, além do treinamento incessante das máquinas, eles não servem. Apresentada como um robô simpático e educado, é certo que MARIA não funciona de modo autônomo e não é capaz de pensar por si, como se fosse um ciborgue.

A arte até cogita a perspectiva de fundir pessoa e máquina há bastante tempo, transportando-as para uma nova dimensão. Mas é fato que não a concebe perdendo “a consciência do ser”, que continuará como “a mente mais brilhante”[1]. Aliás, o desdobramento do tempo nessa dimensão lembra que o “amor segura” e o “passado estrutura”[2].

Premida pelo passado, um dos problemas dessa tecnologia é ser executada a partir de dados pretéritos. Ademais, como construção humana, com a marca de quem a desenvolve, pode ser atravessada por estereótipos ou julgamentos pré-concebidos, traduzidos por algoritmos desenvolvidos fora da realidade na qual se aplicam. Se viciada, a IAG pode reproduzir os vieses da desigualdade que matam a chance de erigir uma nova realidade, surpreendendo constatar que o novidadeiro pode cristalizar o passado perverso.

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Indiscutível a necessidade de colocar as pessoas no centro de gravidade das transformações tecnológicas, para que não se cristalizem assimetrias naturalizadas. Também evidente que sem pessoas nada faz sentido, especialmente se a inteligência humana criadora da IAG não se destinar à proteção dos bens fundamentais da vida, convolados em direitos humanos a serem protegidos por todos os organismos de jurisdição nacional e internacional.

Na corrida contra o tempo para atingir eficiência, economizar recursos e otimizar a força de trabalho, a IAG tem ganhado preferência dos tribunais brasileiros, que buscam desenvolver suas próprias aplicações, batizando-as com nomes variados, a exemplo de MARIA. Esse gesto gera simpatia e familiaridade, estrategicamente reduzindo a rejeição e o temor de dominação das máquinas.

Contudo, a tentativa de humanização dos sistemas algorítmicos não pode ocultar a necessidade premente de se conhecer e debater suas funcionalidades para conferir eficácia, economicidade e celeridade, reunindo o tripé estruturante da eficiência. O escrutínio público é fundamental, com testes variados e auditorias técnicas, acompanhados de relatórios periódicos sobre análise de riscos.

A par desse referencial teórico, facilidades tecnológicas para auxiliar a realização da atribuição confiada à magistratura devem ser implementadas para assegurar o direito fundamental de acesso à justiça. O devido processo legal estruturado na ampla defesa, no contraditório e no juiz natural, com o olho no objetivo de distribuir justiça social, deve ser o eixo de desenvolvimento da Inteligência Artificial para coadjuvar a função judicante.

MARIA desponta com a geração beta, composta pelas pessoas nascidas a partir de 2025, que virão ainda mais moldadas pela IAG e pressionadas pelas emergências climáticas, reclamando sustentabilidade e equilíbrio como ordem insuperável. A expectativa é que essa nova geração de máquinas e pessoas, que possivelmente adentrarão o século 22, permita que a tecnologia possa ser aplicada para que reste tempo e talento para entregar justiça a quem mais precisa, respeitando as pluralidades desse País-continente.

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Equidade racial sempre, paridade em tudo e sustentabilidade social devem compor o trilema de um tempo em que máquinas sirvam pessoas e as interações humanas revelem experiências reais e autênticas. O dever de cuidado e o poder de cautela filtrarão tais aplicações para eliminar ou até mesmo desligar o algoritmo, na impossibilidade de se corrigir defeitos que se afastem dessa ideação tão velha quanto descumprida.

[1] GIL, Gilberto. Futurível in Gilberto Gil: Correio Eletrônico. Gravadora Philips. Salvador: 1969.

[2] FRANÇA, Xênia. Interestelar in Em Nome da Estrela. Gravadora Xênia França. Salvador: 2022.

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Edilene Lôbo
Doutora em Processo Civil. Mestra em Direito Administrativo. Advogada e acadêmica brasileira. Ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral, professora titular do PPGD da Universidade de Itaúna, professora convidada da PUC-Minas e da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3 (2022/2023). Foto: Arquivo pessoal
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