Seis anos depois de fechar um dos maiores acordos de leniência já negociados com o Ministério Público Federal (MPF), o grupo J&F, dos irmãos Wesley e Joesley Batista, agora tenta enterrar o compromisso e reaver o dinheiro que já foi pago.
Em 2017, o grupo se comprometeu a pagar R$ 10,3 bilhões ao longo de 25 anos para encerrar investigações das operações Greenfield, Sepsis, Cui Bono, Bullish e Carne Fraca - missões executadas pela Polícia Federal para desmantelar esquemas de corrupção, fraudes, lavagem de dinheiro e evasão.
A empresa agora alega que foi coagida a assinar o acordo para “assegurar sua sobrevivência financeira e institucional”.
O grupo J&F depositou, até aqui, R$ 2,9 bilhões em favor da União e já se planeja para o embate judicial em busca do ressarcimento. O acordo vem sendo questionado em diferentes frentes pela empresa, que contesta desde a atuação dos procuradores até as regras de cálculo e o próprio teor dos anexos.
Nesta quarta, 20, a J&F conseguiu uma vitória importante no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Dias Toffoli suspendeu os pagamentos da multa e autorizou o grupo a negociar uma revisão do acordo junto à Controladoria-Geral da União (CGU).
Toffoli também permitiu o compartilhamento de documentos da Operação Spoofing, que prendeu os hackers da Lava Jato. A empresa afirma que as mensagens hackeadas comprovam que os procuradores teriam agido à margem da lei para enquadrar a empresa.
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Também partiu de Toffoli a decisão que anulou provas do acordo de Odebrecht. Ao recorrer ao ministro, a J&F afirmou que as duas empresas foram “reféns dos mesmos abusos, praticados pelos mesmos agentes, no mesmíssimo contexto” - Operação Lava Jato.
Esse não é o primeiro golpe no acordo. O negócio já havia sido desidratado por uma decisão da 5.ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, órgão responsável por homologar os acordos de leniência, que em agosto passado anulou cláusulas do pacto, o que levou à uma redução da multa de R$ 10,3 bilhões para R$ 3,5 bilhões.
Na ocasião, o Ministério Público Federal divulgou uma nota alegando que a administração pública tem a obrigação de “anular atos que apresentem vícios e ilegalidade”. Segundo o órgão, houve “falhas e excessos verificados e documentados ao longo da marcha procedimental”.
A ofensiva da J&F é ainda mais ambiciosa. O grupo contesta, por exemplo, a base de cálculo do acordo. A multa foi fixada tomando como base o faturamento global das empresas que compõem o conglomerado, mas os advogados alegam que o pacto foi fechado no Brasil e, por isso, deveria considerar apenas o faturamento nacional do grupo, não incluindo na conta valores relativos a negócios fora do País.
Outro ponto contestado são as condições atenuantes previstas na legislação para reduzir o valor da multa no caso de leniência. O percentual oferecido à J&F foi o mínimo. A empresa alega agora que abasteceu o MPF com informações inéditas e que, por isso, deveria ter recebido uma redução maior.
Os questionamentos não são dirigidos apenas às cláusulas do acordo. A J&F também busca fulminar a própria validade do negócio. Um dos maiores trunfos que o jurídico do grupo julga ter na manga são as absolvições de autoridades citadas nos anexos.
O primeiro e mais longo anexo do acordo implicou o ex-ministro Guido Mantega, que foi absolvido na esteira da Operação Bullish. Ele havia sido acusado de favorecer, em troca de propinas, o grupo J&F em financiamentos junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES).
Outros implicados na leniência, posteriormente absolvidos pela Justiça, foram o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e o senador Ciro Nogueira (PP-PI). O tucano foi inocentado em uma ação que o acusava de receber R$ 2 milhões em propinas da J&F e a investigação contra Ciro Nogueira, também por suspeita de propinas, foi arquivada pelo STF.
“A empresa não pode pagar uma multa sobre aquilo que não é ilícito”, afirma ao Estadão o advogado Francisco de Assis Pereira, que representa a J&F.
O objetivo da empresa, se não conseguir anular na íntegra o acordo, a partir das provas da Operação Spooing, é excluir os anexos que não converteram condenações judiciais e, com isso, reduzir o valor da multa para R$ 24 milhões. Para o advogado da empresa, “é uma questão de matemática”.
Relembre outros políticos citados no acordo de leniência da J&F
“Tem pagamento via oficial, caixa 1, via campanha, tem via caixa 2, tem dinheiro em espécie. Essa era a forma de pagar”, resumiu Joesley Batista em depoimento ao Ministério Público Federal na esteira do acordo de leniência.
Uma das revelações mais emblemáticas foi a gravação que o empresário fez do ex-presidente Michel Temer (MDB) e entregou ao MPF. Joesley disse ao então presidente que estava pagando mesada ao deputado cassado Eduardo Cunha e a Lúcio Funaro, apontado como operador do ex-presidente da Câmara, para que ambos ficassem em silêncio sobre irregularidades. “Tem que manter isso, viu?”, afirmou Temer ao empresário na gravação. O ex-presidente foi absolvido.
O acordo atingiu políticos de diferentes partidos e espectros ideológicos. Um dos executivos entregou aos procuradores uma lista com 1.829 nomes de 28 partidos que teriam recebido R$ 388 milhões de propinas na forma de doações oficiais de campanha.
Um dos citados é o ex-governador de São Paulo e ex-ministro José Serra (PSDB). Segundo Joesley Batista, a JBS pagou R$ 7 milhões, via caixa dois, para a campanha do tucano a presidente em 2010. O processo foi arquivado em 2018 pelo STF por prescrição.
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