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Opinião|Isso não é comigo

O calor do asfalto e do concreto, absorvido durante o dia, faz com que à noite a temperatura aumente até seis graus. Dias insuportavelmente quentes convertem-se em dias letais. É o fenômeno das “ilhas de calor”, que o Brasil já enfrenta e que tem causado muitas mortes

convidado
Por José Renato Nalini

Alguém prestou atenção naquela notícia recente de que milhares de peregrinos naquela obrigatória visita a Meca morreram por causa do calor? Não é só lá. Em El Salvador, um quinto da população trabalha na lida canavieira. Os homens sofrem de doença renal, resultado de desidratação por passar o dia em plantações onde até poucas décadas podiam trabalhar confortavelmente.

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A diálise, muito cara, acrescenta cinco anos de vida ao paciente com insuficiência renal. Sem a diálise, perecem após poucas semanas. Mas o deserto térmico está também pertinho de nós. Ou o que não sofreram os moradores das áreas - mais de sessenta por cento do Brasil - incendiadas entre final de agosto e início de setembro?

De que adianta explorar a Inteligência Artificial, se a inteligência humana não tem sido capaz de controlar a excessiva emissão de gases venenosos, geradores do efeito estufa, causa do aquecimento global que vai esvaziar a face da Terra?

Não adianta indagar quanto ainda o planeta vai esquentar. A ciência já ofereceu suas previsões. Mas o que interessa é a reação humana a esse fenômeno. Lê-se em “A terra inabitável”, que “os perigos da mudança climática são voláteis; a incerteza a torna uma ameaça metamórfica. Em que momento o planeta via ficar dois ou três graus mais quente? Qual será o nível do mar por aqui em 2030, 2050, 2100, quando nossos filhos estiverem deixando a Terra para seus filhos e netos? Quais cidades serão inundadas, quais florestas morrerão, os celeiros de quem ficarão vazios?”.

Existe ainda uma calamitosa incerteza, principalmente gerada pela perplexidade que acomete os remanescentes pensantes: até quando a maior parte da humanidade, notadamente aqueles que poderiam fazer algo de concreto para tornar as cidades mais resilientes, continuarão a se portar como se isso não os afetasse?

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A quantidade de carbono que continuamos a emitir, não depende mais da ciência. Depende da política. Banir os combustíveis fósseis da vida rotineira não é problema científico. As evidências comprovam que óleo diesel e gasolina são os venenos mais letais. É uma opção dos governos e daqueles conglomerados econômicos que se apropriaram da maior parte da soberania, para fazer do mundo o exclusivo cenário do monopólio business.

A ciência prevê tudo. A meteorologia atua com precisão milimétrica. O único mistério consiste em perquirir o que é que a humanidade vai fazer, diante desse perigo concreto, que já não é mera ameaça, mas cruel realidade.

Para quem se dedica a estudar a questão climática, assim como David Wallace-Wells, “as lições dessa história são infelizmente sombrias. Três quartos de século depois de o aquecimento global ser admitido como um problema pela primeira vez, não fizemos nenhum grande ajuste em nossa produção ou em nosso consumo de energia para corrigi-lo ou nos proteger dele. Há muito tempo os observadores leigos do clima viram os cientistas sugerirem ações para a estabilização do clima e concluíram que o mundo as adotaria; em vez disso, o mundo não fez praticamente nada, como se essas ações pudessem se implementar por si mesmas. As forças do mercado reduziram o custo e aumentaram a oferta de energia verde, mas as mesmas forças absorveram essas inovações, ou seja, lucraram com elas, enquanto continuaram aumentando as emissões”.

As promessas e compromissos foram descartados. A vontade política permanece no discurso estéril, na retórica vazia, na dolosa omissão generalizada. Heroísmos individuais costumam ser ridicularizados. Manobra diversionista costuma rotular o ambientalismo como pauta da esquerda. O que permite à extrema direita furiosa e burra continuar a sua política de eficaz destruição das condições saudáveis para a permanência da vida sobre a Terra.

O risco mais imediato está na conurbação. As cidades agravam as emissões. Asfalto, concreto e tudo o mais que as forma, inclusive os corpos humanos, absorvem o calor ambiente e o armazenam durante algum tempo. David Wallace-Wells chama isso de “pílula de veneno de liberação prolongada”. Pois o calor do asfalto e do concreto absorvido durante o dia, faz com que à noite a temperatura aumente até seis graus. Aquilo que seriam dias insuportavelmente quentes, convertem-se em dias letais. É o fenômeno das “ilhas de calor”, que o Brasil já enfrenta e que tem causado muitas mortes. Mas, como em regra acontece, prepondera o “isso não é comigo”. E você? De que lado está?

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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Felipe Rau/Estadão
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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.

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