Os depoimentos prestados no âmbito da operação Tempus Veritatis (Tempo da Verdade, em tradução do latim) à Polícia Federal foram liberados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes nesta sexta-feira, 15. O inquérito investiga suposta ação golpista por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e aliados contra o estado democrático de direito. Especialistas da área jurídica ouvidos pelo Estadão dizem acreditar que uma prisão do ex-chefe do Poder Executivo, agora, é difícil. Contudo, alguns deles apontam que os novos relatos dos ex-comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, complicam muito a situação do ex-presidente.
Para os juristas consultados, uma prisão sem trânsito em julgado, ou seja, preventiva, pode trazer consequências negativas ao Poder Judiciário caso, posteriormente, o conjunto probatório não seja forte para, de fato, enquadrar o ex-presidente da República, que detém uma parcela significante de apoiadores.
Gustavo Badaró, professor de direito processual penal da Universidade de São Paulo (USP), disse que os depoimentos confirmam que a minuta do golpe não era uma “bravata”, mas fazia parte de um plano articulado para encontrar uma estratégia jurídica para evitar a posse do presidente eleito. “São duas testemunhas qualificadas no contexto em que aquilo teria sido discutido, que eram seus imediatos na cadeia de comando. Qualquer ato com roupagem jurídica precisaria daquele apoio. Isso me parece prova mais do que suficiente de que aquilo efetivamente foi um plano que seriamente chegou a ser trabalhado com efetiva intenção de ser colocado em prática”, avalia.
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Apesar de a veracidade do testemunho, por vezes, ser colocada em dúvida dentro do processo penal, o cenário se torna mais grave aos envolvidos na medida em que os fatos narrados são corroborados por terceiros e provas documentais, como a “minuta de golpe” que teria sido encontrada no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.
“Quando se tinha apenas a palavra do Mauro Cid, por existir uma desconfiança com o delator premiado, a própria lei estabelece que somente com base nela não poderiam ser decretadas medidas cautelares contra o delatado, oferecer denúncia e muito menos condená-lo. Esses depoimentos (dos comandantes do Exército e da Aeronáutica) significam o que a lei chama de prova de corroboração. Além da palavra do delator e de uma prova de outra natureza, que seria um documento eletrônico, passou-se a ter duas novas fontes de prova, as duas testemunhas, nesse sentido. A mim, parece que complica bastante a situação do Bolsonaro.”
Ele explica que há espaço para discussão, do ponto de vista jurídico, se os fatos narrados podem configurar os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, que são chamados de crimes tentados, ou seja, não precisam ser efetivados para caracterizar uma ilegalidade. “Pode haver uma discussão jurídica se tratar de uma minuta, quando a lei diz que (o crime) tem que ser mediante violência ou grave ameaça, seria suficiente para caracterizar o crime ou seriam meros atos preparatórios. Mas, considerando que o inquérito policial se destina a colher elementos para construção histórica dos fatos, robustece bastante a hipótese investigada.”
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Sobre a chance de uma prisão preventiva atingir o ex-presidente, Badaró esclarece que a autoridade policial teria que demonstrar que medidas cautelares menos gravosas, como a própria retenção do passaporte, não seriam suficientes para prevenir um risco de fuga, por exemplo. Outro aspecto que poderia justificar a prisão diz respeito ao risco de reiteração do crime, de modo a garantir a ordem pública. Nesse caso, o fato de Bolsonaro não ocupar mais o cargo de presidente da República enfraquece essa hipótese. “É difícil imaginar que, hoje, estando Bolsonaro afastado, sem mandato e sem poder concorrer, ele demonstre risco de uma nova tentativa de golpe ou invasão em Brasília.”
O professor da USP reforça ainda que a decretação de prisão preventiva deve estar relacionada a circunstâncias específicas do caso, como uma ameaça ao processo e à sociedade em geral, e não a uma probabilidade aventada de alguém ser declarado culpado dentro de uma investigação em andamento.
Acácio Miranda, doutor em democracia e direitos humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em direito constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), entende que a investigação ainda está numa fase embrionária, mas que os depoimentos do ex-chefe da Força Aérea Brasileira (FAB) e do ex-comandante do Exército trazem informações “contundentes” que reforçam a hipótese da PF de que que foi orquestrada uma tentativa de golpe de Estado no governo Bolsonaro.
“Essas provas serão revisitadas, reavaliadas e contraditadas. Acho muito pouco provável que a gente possa cravar nesse momento que Bolsonaro será condenado, mas temos indícios suficientes para mover todo o aparato estatal e apurar o que estava acontecendo”, aponta.
Miranda acrescenta que, do ponto de vista jurídico, cabe ao magistrado definir o peso de cada prova obtida no processo, incluindo o testemunho dos militares. Porém, dada a publicidade do processo e as partes envolvidas, uma eventual condenação de Bolsonaro provavelmente demanda mais elementos. Ele também não vê motivos hoje para decretar a prisão preventiva do ex-presidente, pois a investigação não parece estar sob risco de destruição de provas, nem de fuga, por exemplo.
Golpe é a morte da Constituição, avalia Tourinho Leal
Doutor em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Saul Tourinho Leal avalia que conteúdo de depoimentos de integrantes das Forças Armadas mostram “violências múltiplas à Constituição Federal”, desapreço às instituições democráticas e visão deturpada do estado de sítio ou estado de defesa”.
“O golpe é anticonstituição, o golpe é a morte da Constituição, o golpe é uma forma de destruir todas as prerrogativas estipuladas pela Constituição. Mas ainda que não falemos de golpe, mas de estado de defesa ou estado de sítio, porque o ex-presidente já deu sinalizações nesse sentido, não é exatamente assim. O estado de sítio que, de fato é regrado na Constituição Federal, no capítulo especifico, assim como o estado de defesa, são institutos repletos de condicionantes e jamais foram usados no Brasil, exatamente pelo caráter excepcionalíssimo”, disse.
Tourinho Leal lembrou que o País já passou por problemas graves, como processos de impeachment de ex-presidentes e manifestações, por exemplo, mas em nenhum momento, desde a redemocratização, o País precisou usar estado de sítio ou defesa.
“A Constituição não tem dispositivo que diga ‘quem perde a eleição, pode decretar estado de sítio, porque perdeu a eleição’. Na Constituição há condicionantes, como desestabilizações sistêmicas, ela imagina um nível de metástase institucional a ponto dos Poderes não conseguirem mais exercer suas missões institucionais. Estes são requisitos de um estado de defesa e estado de sítio”, argumenta. “Portanto, tudo o que temos assistido no que diz respeito a essas revelações mostram violências múltiplas à Constituição Federal, mostram desapreço às instituições democráticas e visão deturpada do estado de sítio ou estado de defesa, como se fosse um trunfo para o derrotado não arcar com as consequências da sua derrota. A Constituição não trabalha com essa lógica, a Constituição trabalha com uma lógica democrática. Institutos como esses, de tão excepcionais que são, mesmo com Brasil já tendo enfrentado problemas sociais, o Brasil jamais cogitou nenhum, nem outro.”
O golpe é anticonstituição, o golpe é a morte da Constituição, o golpe é uma forma de destruir todas as prerrogativas estipuladas pela Constituição
Saul Tourinho Leal, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)
Prisão de Bolsonaro, hoje, seria impopular para STF, diz Julio Hidalgo
Mestre em direito do estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional (ESDC), Julio Cesar Hidalgo diz que, primeiro, parcela da opinião pública deve ser mudada para que populares vejam a possível situação em que Bolsonaro deixou o poder e, assim, uma prisão ocorrer.
“A situação do Bolsonaro vai piorar muito. E isso pode ser para preparar opinião popular para prisão dele. Está cedo (a prisão), porque não tem sinal de que ele vai fugir. Agora, se tivéssemos evidências de tentativa de atrapalhar, influenciar as investigações ou se preparando para fugir, tudo bem. Mas, antes de mudar a opinião popular um pouco, acho difícil. Decretar uma prisão hoje seria impopular por parte do Supremo”, avalia Hidalgo, que também é professor de direito constitucional, administrativo e consumidor.
Hidalgo diz que, no seu entendimento, “a Constituição foi desrespeitada, sim, porque na época em que ele (Bolsonaro) era presidente da República, ele atentou contra o Poder Judiciário, atentou contra o Poder Legislativo. O artigo 85 prevê entre os crimes de responsabilidade atentar contra existência e funcionamento dos Poderes. Além disso, qualquer tentativa de golpe de Estado é atentado contra a democracia, presumindo o que está nos depoimentos seja verdadeiro. Isso vai colocar lenha na fogueira, porque a imprensa noticia isso e, provavelmente, vai mudar parte da opinião pública”.
Fábio Tavares Sobreira, professor de direito constitucional e pós-graduado em direito público e mestrando em gestão e políticas públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) disse não ver indícios para confirmação de golpe por parte do presidente Bolsonaro.
“Acompanhei as falas (nos depoimentos) e são inócuas, à margem da Constituição. Fica evidente que (representantes das Forças Armadas) usam como moeda de troca, até mesmo pela narrativa que é absolutamente incompatível com a fala de um comandante, principalmente ex-ministro. Não podemos esquecer que os comandantes têm como chefe supremo o presidente da República. Então é mais do que duvidosa a fala. Jamais um comandante, ministro que seja, falaria ao presidente que ele (presidente) poderia ser preso por tal pessoa, já que o chefe supremo é o presidente da República”, questiona Sobreira.
O especialista afirma ainda que a minuta identificada como prova para um possível golpe de Bolsonaro e seus fiéis aliados não pode ser utilizada. Isso porque, segundo ele, o documento era para uma possível utilização constitucional do estado de defesa. Para ele, não há, até o momento, nada para incriminar Bolsonaro.
“A minuta do famigerado golpe não é minuta de golpe. É uma minuta que indica claramente uma possibilidade constitucional do presidente da República de decretar famoso estado de defesa, que é um instrumento que o próprio presidente da República pode utilizar, desde que ouça o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, formado por comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército, sem prejuízo de outras autoridades. E a ideia do estado de defesa é para preservar ou restabelecer em locais restritos e determinados a ordem pública ou paz social ameaçados por grave instabilidade institucional. É lamentável a fala desses comandantes e de ex-ministros que estão falando o que estão falando por alguma questão obscura que existem por trás das cortinas que não podemos afirmar em hipótese alguma”, afirmou Sobreira.
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