
Para Juliana Sakai, diretora-executiva da Transparência Brasil, a decisão da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que autorizou o pagamento de penduricalhos a magistrados até o limite de R$ 46,3 mil mensais, é uma maneira de burlar o teto do funcionalismo público. “O serviço público não serve para enriquecer”, critica.
Na prática, cria-se um teto exclusivo para magistrados, de R$ 92,6 mil mensais - o dobro do que foi estabelecido na Constituição. Em entrevista ao Estadão, Juliana Sakai critica a mudança e defende que o Poder Judiciário precisa “disciplinar e moralizar os seus ganhos”.
“Há uma disparidade muito grande e a decisão legitima essa disparidade. Reforça essa visão dos próprios magistrados de que eles são uma elite na pirâmide do funcionarismo público e têm direitos que os demais não têm. E mantém essa desigualdade gigantesca em relação à maioria da população”, avalia.
É a primeira vez que o Conselho Nacional de Justiça estabelece um limite para os extras que engordam contracheques de juízes e desembargadores. A decisão da Corregedoria Nacional de Justiça não é impositiva. Formalmente, os tribunais não são obrigados a observar o valor, mas podem sofrer punições se a Corregedoria do CNJ for acionada. Os tribunais têm autonomia administrativa e financeira, mas a Corregedoria Nacional de Justiça pode anular decisões de gestão se considerar que há ilegalidade.
Juliana projeta que outros órgãos do sistema de justiça devem seguir o exemplo da magistratura. É o que já vem ocorrendo com benefícios pagos fora do teto. Com base no argumento de que não pode haver desigualdade entre as carreiras do sistema de justiça e entre os ramos do Judiciário, penduricalhos criados administrativamente são estendidos mutuamente.
“Quando você vê tantos órgãos de controle agindo de forma extremamente corporativa, com valores indecentes com relação ao que a população do País ganha, isso gera um crédito institucional. A gente está falando não só de crise fiscal, mas de crise democrática”, alerta.

Leia a entrevista completa:
O CNJ estabeleceu um limite para os pagamentos acima do limite remuneratório previsto na Constituição mas, ao mesmo tempo, na prática, está validando o furo do teto. Concorda com essa avaliação?
O CNJ disciplina supersalários absurdos. Tudo o que sai fora da curva desses grandes volumes vai ser cortado porque na avaliação deles é demais. No entanto, o teto se torna duas vezes o teto real. Há duas mensagens aí. A primeira é que o Judiciário não está contente com o que determina a Constituição e vai continuar fazendo o que pode para ganhar acima disso. A segunda é uma ação contra os casos muito gritantes. Você consegue cortar esse topo da pirâmide, mas ao mesmo tempo você contraria claramente a Constituição ao dobrar o valor do que deveria ser o teto constitucional. O que faz a gente se perguntar o que esses servidores estão fazendo no serviço público. O serviço público não serve para enriquecer. Você tem que ter bom salário, são pessoas bem formadas, mas não para ganhar R$ 100 mil por mês, num país que tem a média salarial que tem o Brasil. Há uma disparidade muito grande e a decisão legitima essa disparidade. Reforça essa visão dos próprios magistrados de que eles são uma elite na pirâmide do funcionarismo público e têm direitos que os demais não têm. E mantém essa desigualdade gigantesca em relação à maioria da população, mas também dentro da própria estrutura do serviço público.
Então você acha que a decisão é inconstitucional?
Exato, porque o teto constitucional existe justamente para impedir que pessoas com muito poder, seja no Judiciário, no Legislativo ou no Executivo, usem desse poder para enriquecer às custas do erário. Na medida em que você começa a criar uma série de verbas, as quais que você dá o nome de não remuneratórias, quando elas são claramente remuneratórias, isso é um desvio da Constituição. É uma forma de burlar a Constituição. É chamar de nome diverso algo que é feito para engordar os contracheques. Então, na minha visão, na visão da Transparência Brasil, é inconstitucional.
Prevê uma grande corrida de outras categorias de servidores em busca do privilégio?
Sem dúvida. É isso que a gente viu no caso da criação da licença compensatória. O Ministério Público fez, aí depois os tribunais começaram a pleitear. E aí de repente tem tribunal pagando retroativamente. É uma corrida por benefícios em que eles têm essa conversão. As Defensorias Públicas a mesma coisa. São órgãos que têm um orçamento muito restrito, mas, ainda assim, você vai ver a categoria organizada para fazer a defesa desses penduricalhos. Tribunais de Contas, a mesma coisa. Você acaba, inclusive, cooptando todas as formas de controle. Uma vez que você já tem essa cooptação de todas as estruturas de controle compartilhando benefícios, eles vão decidir em um conflito de interesses. Se você vai regular o seu, você vai cortar o seu também. Então, você não está mais decidindo pela causa, pelo interesse público, que é como um servidor público deve se portar.
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Acredita que o Ministério Público, fiscal da lei, vai tomar alguma medida, insurgindo-se contra o super teto dos magistrados? Ou ficará inerte para também se beneficiar da regalia?
Vamos depender de algumas figuras que têm uma certa iluminação, mas que vão correr contra todo um corporativismo e correm o risco de ser isolados dentro dos seus poderes se começarem a falar contra os benefícios que a categoria deve receber. Então, é muito difícil. Quando a gente está falando de justiça, a gente está falando de um lugar de responsabilidade, de implementação das regras, de defesa do interesse público. Esse é o papel do Ministério Público. Quando você vê tantos órgãos de controle agindo de forma extremamente corporativa, com valores indecentes com relação ao que a população do País ganha, isso gera um crédito institucional. A gente está falando não só de crise fiscal, mas de crise democrática. Existe um papel muito grande do sistema de justiça de disciplinar e moralizar os seus ganhos, os seus gastos.
Quando se fala em cortar privilégios, magistrados e tribunais se insurgem dizendo que isso pode provocar uma debandada de quadros qualificados. Como enxerga esse argumento?
É o argumento de uma casta que está dissociada do resto da população. No final das contas, levanta também o questionamento do perfil dessas pessoas. É um perfil específico, extremamente masculino, de pessoas abastadas, brancas, etc. Precisamos pensar qual é a qualidade do próprio sistema de justiça, se é esse o perfil que queremos. E, em última instância, parece completamente fora da realidade falar sobre isso, mas e se a gente diminuísse esses salários? A gente conseguiria mudar o perfil das pessoas que estão ali? Talvez com servidores genuinamente alinhados ao propósito que a justiça brasileira deveria ter? Os magistrados já entram ganhando o máximo e argumentam que há pouco incentivo de progressão na carreira. Com base nesse argumento, estão sempre querendo mais, sempre indo para cima dos cofres públicos.
Não incide Imposto de Renda sobre os penduricalhos. Como ficam os contribuintes que recolhem imposto na fonte, ou seja, compulsoriamente? Não falta isonomia?
É mais um aspecto dessa falta de isonomia.
Como fica o teto de R$ 46 mil que a Constituição estabeleceu para todo o funcionalismo?
Fica para os ministros do STF. E aí você tem uma diferença cada vez maior entre órgão de controle e órgão de gestão. No caso da licença-prêmio, por exemplo, houve uma reforma administrativa que extinguiu esse direito do Executivo Federal. Foi uma reforma administrativa que não incluiu o sistema de justiça. E o que aconteceu? Você vê no Ministério Público e no Judiciário essa licença, com possibilidade de pagamento em dinheiro. De um lado, você vai tornando menos atraentes as posições de executivo, de gestão. E coloca o controle como algo extremamente estruturado, com salários absurdos. Cria-se uma desigualdade dentro do serviço público brasileiro. A tendência é ter um perfil muito mais precário das pessoas que são responsáveis, no final das contas, por implementar as políticas públicas.