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Opinião|Labirintos atonais

A erudição de Caetano Lagrasta, leitor inveterado de todos os assuntos, cultor da filosofia e corajoso explorador de assuntos pioneiros, o encoraja a abordar a questão do tempo perdido. Tempo: o único insumo insuscetível de ser multiplicado por força da vontade humana. As horas que se esvaem são subtraídas ao total de nossa oportunidade de permanecer neste sofrido planeta

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convidado
Por José Renato Nalini
Atualização:

Por onde e para onde nos leva a música? São labirínticos os seus rumos. Depende da música, depende de nós. Encantar-se com o encadeamento harmônico de sons, entregar-se à memória acústica impregnada de cantos de ninar, de canções hoje esquecidas, sentir e incorporar o ritmo no corpo que responde a tal chamado, é experiência concreta de cada um.

Associar a música à medicina, já é um dom insólito. É o que faz o polímata Caetano Lagrasta, ser complexo em que a devoção à Justiça e ao aprimoramento dessa ferramenta estatal de solucionar conflitos, mescla-se a uma singular sensibilidade artística.

Caetano Lagrasta Foto: Arquivo pessoal

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Seu livro mais recente é “Vesalius e Música. Ensaio para poemas atonais”. Sedutora a estratégia adotada na divisão dos capítulos. A partitura tem início com a abertura, segue-se o primeiro movimento, estranho interlúdio, segundo movimento – jazz, terceiro movimento – áfrica negra, quarto movimento, agro e gospelejo, em continuidade coda e finale lacrimoso, “ma non tanto”. Vem depois o labor poético: brevíssima narrativa da destruição das índias, segunda relação colonial – degredados, escravos e refugiados.

Ao citar Igor Stravinsky, ele já explicita o seu propósito: “A música nos foi dada com o objetivo único de colocar ordem nas coisas, incluindo, particularmente, a coordenação entre o homem e o tempo”. Narra o que considera suas “duas frustrações: Medicina e Música; aquela por não ter meios de cursá-la, e esta, além da pobreza, a fraca agudeza de “ouvido”.

Seus dois sonhos o acompanharam vida afora. O gatilho ensejador desta obra foi vincular as impressionantes figuras dos livros de anatomia de Andreas Vesalius, “De Humani Corporis Fabrica”, “Epitome” e “Tabula Sex”, aos rumos surreais da música. O delírio resultou em unificar, numa instigante explosão de sensações e impressões, imagens fortes e ritmos alucinantes.

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Recuperou, na memória, a música de sua infância. Recolheu textos e percorreu a trajetória dos aparelhos de som. Coletou e adquiriu discos e livros, acrescentando elementos preciosos para a peregrinação que chega até sua alma. Reconstituiu sintética, porém significativa história da música, aprofundando-se em leitura que vai de Mikhail Bakhtin a Wolfgang Kayser, de Antônio Nóbrega a Cervantes, Shakespeare e Rabelais. Recorda-se de Mário de Andrade, Roland de Candé, François Ballard, David Graeber e David Wengrow, de Ailton Krenak e Davi Kopenawa a Alejo Carpentier, Eric J. Hobsbawn, a Darcy Ribeiro, Claude Lévi-Strauss e Roberto Machado. Inúmeras outras citações, prova de sua inegável cultura.

A erudição de Caetano Lagrasta, leitor inveterado de todos os assuntos, cultor da filosofia e corajoso explorador de assuntos pioneiros, o encoraja a abordar a questão do tempo perdido. Tempo: o único insumo insuscetível de ser multiplicado por força da vontade humana. As horas que se esvaem são subtraídas ao total de nossa oportunidade de permanecer neste sofrido planeta.

Contempla a distinção entre memória voluntária e involuntária, esta “a memória afetiva, a memória dos sentimentos, inconsciente, que suspende a ação do hábito, uma irrupção repentina, súbita, do passado, uma deflagração imediata, deliciosa e total, que ressuscita o passado esquecido, despertando uma impressão passada”, na expressão de Roberto Machado. Invoca Ernesto Sabato para enfatizar “a forte injeção de sangue negro e indígena”, presente na formação do brasileiro. Sem deixar de lembrar a epopeia de perversidade dos que escravizavam os africanos. Destes, só sobreviveram os fortes, pois os fracos pereciam antes de chegar ao terrível destino.

Passa pelas transformações do mercado musical, da ascensão da tendência sertaneja, para chegar à crescente ameaça do Doomsday Clock, relógio que “retrata os riscos irreversíveis de saturação do sistema Terra, diante da reiterada destruição pelo Homem e inércia dos países, e que, presume-se, deverá ocorrer no transcurso deste decênio, conforme extensa coletânea de estudos científicos, além da aceleração vertiginosa de todos os principais indicadores de colapso socioambiental”.

Não é auspiciosa a visão do filósofo Caetano Lagrasta: “O que se avizinha rapidamente como tragédia é o aumento da temperatura do planeta através de calor intenso e mortífero; derretimento das geleiras, ocorrência reiterada de ciclones, vendavais, chuvas e alagamentos, fome; falta de água potável, produção indiscriminada de materiais poluentes, além do morticínio indiscriminado de insetos e animais, sem contar a queima e ocupação de biomas, assoreamento de rios, a culminar na extinção pelo homem...”. Tudo isso, profeticamente escrito antes das semanas de terror entre agosto e setembro, quando mais da metade do Brasil ardia em chamas.

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Consistentes as razões para a poesia atonal de Caetano Lagrasta ser melancólica e apocalíptica. Mas quem escreve assim, não pode falar em frustração. Compensou, com seu talento literário, aquilo que alega haver faltado em suas elucubrações juvenis. Sorte nossa, que podemos nos deleitar com sua pesquisa e originalidade.

Convidado deste artigo

Foto do autor José Renato Nalini
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José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e secretário executivo das Mudanças Climáticas de São Paulo. Foto: Iara Morselli/Estadão
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