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Opinião|Lavagem de dinheiro em contratos públicos

A atuação repressiva, apesar de pedagógica, nem sempre consegue reparar os prejuízos decorrentes de desvios de dinheiro ou da interrupção de contrato que impacte na prestação de serviço público. Daí a importância da ação preventiva

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convidado
Por Valdir Moysés Simão

Uma das grandes dificuldades enfrentadas pela administração pública é prevenir fraudes em licitações, aquisições, concessões e permissões. Cito dois casos recentes para exemplificar: o cancelamento do leilão da Conab para compra de arroz importado, cujas regras foram aprovadas em caráter excepcional pela Medida Provisória 1.217/2024, e a operação do Ministério Público que prendeu dirigentes de empresa concessionária de serviço público de transporte na cidade de São Paulo.

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É claro que, em determinados casos, as fraudes ocorrem por envolvimento de agentes públicos, que facilitam sua ocorrência por ação ou omissão no direcionamento das licitações ou na leniência na fiscalização da execução dos contratos. Mas nem sempre é assim. As fraudes podem ocorrer ainda que o gestor responsável tenha agido de forma idônea e não tenha cometido erros considerados grosseiros, causadores de sua responsabilização. Essa possibilidade decorre de falhas ainda existentes na legislação e normas procedimentais aplicáveis aos processos licitatórios e que precisam ser urgentemente corrigidas.

Após aproximadamente 8 anos de tramitação, em 1º de abril de 2021 o Congresso Nacional aprovou uma nova lei de licitações e contratos administrativos, com alterações importantes para dar maiores garantias à administração pública quanto ao recebimento de bens e à boa execução de serviços. As inovações da Lei 14.133/2021 demandaram tempo para que os órgãos públicos se adaptassem e sua vigência plena iniciou-se somente este ano, com a revogação definitiva da Lei 8.666/1993.

A nova lei procurou dotar a administração de instrumentos eficazes para dar mais transparência e controle aos processos licitatórios e para uma melhor supervisão da execução dos contratos públicos. É o caso da possibilidade de que o edital de licitação seja impugnado por qualquer pessoa para fins de esclarecimento em relação a eventual desconformidade, a exigência de que o vencedor de licitação em contratações de grande vulto, acima de R$ 200 milhões, implante em até 6 meses um programa de integridade, ou ainda o agravamento das sanções no caso de constatação de irregularidades.

Mas ainda que a nova lei traga diretrizes claras para que as contratações sejam submetidas de forma contínua e permanente a práticas de gestão de riscos, controle preventivo e controle social, o fato é que ainda são precários os instrumentos para que a administração previna que os contratos públicos sejam utilizados para a prática de ilícitos.

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Em outras palavras, é possível que determinada empresa, utilizada como meio para a prática de ilícito, vença licitamente determinada concorrência ou leilão e execute adequadamente o objeto do contrato. Nessa situação, um contrato público que atende ao princípio da economicidade, no binômio preço e qualidade, pode ser instrumento para a lavagem de dinheiro de organização criminosa.

Isso ocorre porque existe uma deficiência numa importante fase do processo licitatório, a habilitação, na qual se verificam informações e documentos do licitante. Segundo a lei, a empresa licitante deve habilitar-se nos aspectos jurídico, técnico, fiscal, social e trabalhista e econômico-financeiro. A deficiência é que deveria haver também a habilitação na dimensão da integridade.

Uma das principais políticas nos sistemas de integridade empresariais é a que trata da prevenção à lavagem de dinheiro. As diligências de integridade em contratações, por meio de processos como o chamado “conheça seu fornecedor” (Know Your Supplier), visam a mitigar riscos, inclusive institucionais e reputacionais àquele que entretêm relação contratual para o fornecimento de bens ou serviços.

Os programas de integridade do setor público, diferentemente do que ocorre no setor privado, não contam com política específica objetivando prevenir que os contratos públicos sejam utilizados para o crime de lavagem de dinheiro. A implantação da habilitação de integridade seria de grande valia para o aprimoramento das contratações públicas. Saber como o fornecedor financia sua operação, quem são seus parceiros de negócio, quais são suas políticas de distribuição de lucros e seus reais beneficiários, são exemplos de diligências possíveis nessa fase.

É claro que a habilitação de integridade deve ser implantada com o menor nível de subjetividade possível, para evitar-se que tenha efeito contrário ao que se pretende, ou que seja utilizada como instrumento para afastar ilicitamente determinado fornecedor. Mas note-se que a administração pública já detém em seus bancos de dados todas as informações necessárias para as diligências preventivas. Receita Federal, Banco Central e COAF são bons exemplos.

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Outro instrumento importante, introduzido pela Lei 14.133/2021, é o Portal Nacional de Contratações Públicas, que deve conter, entre outras funcionalidades, sistema de registro cadastral unificado, para identificação prévia de licitantes. É necessário tornar o Portal um instrumento obrigatório de caráter nacional, bem como aperfeiçoar sua governança e seu funcionamento, com a inclusão da sociedade civil em seu comitê gestor e a adoção de canal de denúncias para relatos de irregularidades ou de empresas credenciadas suspeitas.

Os órgãos de defesa do Estado têm sido eficientes para identificar irregularidades e responsabilizar agentes públicos e particulares. Mas a atuação repressiva, apesar de pedagógica, nem sempre consegue reparar os prejuízos decorrentes de desvios de dinheiro ou da interrupção de contrato que impacte na prestação de serviço público. Daí a importância da ação preventiva.

Diz-se, comumente, que o fraudador está sempre um passo à frente. Mas é possível inverter essa lógica pensando-se em estratégias eficientes que previnam a ocorrência de ilícitos.

Convidado deste artigo

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Valdir Moysés Simão
Advogado, ex-ministro da CGU e do Planejamento, Orçamento e Gestão, é sócio do Warde Advogados. Foto: Warde Advogados/Divulgação
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