O advento da Lei n. 12.850/2013, denominada Lei das Organizações Criminosas, que ora completa 10 anos, foi um marco de referência ao enfrentamento à criminalidade organizada no Brasil, não somente porque internalizou a Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), mas principalmente porque o texto aprovado reflete a intensa e múltipla contribuição da academia e das instituições que integram o sistema de justiça criminal brasileiro.
Essencial à persecução penal do crime organizado, a legislação veio a suprir diversas lacunas existentes na tímida lei 9.034/95, como, por exemplo, a própria construção de uma definição do crime de organização criminosa. Apesar de não se desconhecer, à época, a existência de grupos estruturados para a prática de delitos, os aplicadores do direito e a doutrina, para colmatar a lacuna, só encontraram uma definição legal com a Convenção de Palermo e, ano de 2012, pela pouco lembrada lei 12.694, que dispõe sobre o julgamento colegiado de crimes praticados por grupos criminosos. O crime de organização criminosa, entretanto, só passou a integrar nosso ordenamento jurídico com o advento da Lei 12.850/13.
A primeira lei sobre organizações criminosas também previu alguns meios especiais de obtenção de prova, como infiltração policial e colaboração premiada, contudo não definiu os lindes procedimentais a serem observados. Com isso, deixou à criatividade dos aplicadores do direito a forma de implementação de tais técnicas, o que gerou insegurança jurídica. A lei 12.850/13, entretanto, reservou seções inteiras para detalhar o cabedal de procedimentos a serem observados, a definir, de forma mais clara, o alcance e abrangência de institutos extremamente invasivos.
Apesar das melhorias legislativas, há ainda muito a evoluir. Deparamo-nos com organizações criminosas sofisticadas, internacionais ou com estabelecimento de "alianças" horizontais nacionais e transnacionais que, assim como as empresas, incluem nas suas divisões de trabalho os especialistas em lavagem de dinheiro, segurança e transporte, como também os químicos para regular a quantidade e o volume dos produtos da droga, por exemplo.
Se não bastasse, nesses últimos 10 anos, a tecnologia avançou de forma exponencial, conferindo ainda mais vantagens às organizações criminosas, como uma maior fluidez no fluxo comunicacional, na exploração econômica ilegal e nas transações financeiras.
É preciso, assim, avançarmos. A adaptação da legislação e da persecução penal às novas tecnologias e aos novos direitos fundamentais decorrentes dos avanços tecnológicos, como o direito à proteção de dados pessoais, à autodeterminação informacional, é premente. Portanto, há necessidade de intensificar as pesquisas dogmáticas sobre o uso desse recurso na prevenção e repressão das organizações criminosas, ao tempo que se deve incentivar modulações legislativas e jurisprudenciais, a fim de acompanhar os avanços tecnológicos na persecução penal, ao tempo em que se assegura a proteção de direitos e garantias fundamentais.
Por outro lado, a cooperação entre países e entre agência nacionais e internacionais é apontada como a forma mais adequada de responder para as alianças e fusões cada vez mais frequentes entre as organizações criminosas, nacionais e transnacionais. Contudo, a efetividade da cooperação no controle do crime organizado, tendo em vista o seu caráter interinstitucional, impõe, para além da formalização de instrumentos normativos, a construção de um modelo de governança colaborativa que compatibilize as diferenças, neutralize as ameaças e potencialize a produção de resultados.
Corrupção, lavagem de dinheiro, segurança, defesa, crime organizado são problemas complexos, submetidos a um regime de competência concorrente e fragmentado dada a sua interdisciplinaridade e que, portanto, pressupõem o engajamento de pessoas e instituições, inclusive do parlamento, para sedimentação de um modelo que seja capaz de reduzir o risco do conflito de decisões e potencializar a geração de resultados do controle à regulação, da prevenção à repressão, além de efetivar mais segurança jurídica.
Não há dúvida de que as reformas legislativas são necessárias, assim como o aumento da transparência e do controle, o monitoramento financeiro, a inteligência de dados e a utilização de recursos. Contudo, somado a tudo isso, a grande diferença no enfrentamento ao crime organizado pode ser conferir uma mudança de patamar da cooperação e interação entre órgãos de persecução e fiscalização, nacionais e estrangeiros.
*Daniel de Resende Salgado é procurador da República, doutorando e mestre em processo penal pela USP, ex-secretário de pesquisa e análise do gabinete do procurador-geral da República e membro fundador do ID-i (Instituto de Direito e Inovação); Fabio Ramazzini Bechara é promotor de Justiça em São Paulo e professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Rodrigo de Grandis é ex-procurador da República, sócio da área penal empresarial do TozziniFreire Advogados, doutor e mestre em Direito Penal (USP), professor do curso de mestrado profissional da Escola de Direito FGV/SP, professor titular do Programa de pós-graduação em Direito da Uninove e professor de Direito Penal e Processual Penal da PUC/SP. Coordenadores da obra 10 Anos da Lei das Organizações Criminosas, publicada pela editora Almedina Brasil
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