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Opinião|Madonna x inteligência artificial: para quem vai a sua aposta?

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convidado
Por Letícia Provedel*

Madonna x Inteligência Artificial: para quem vai a sua aposta?

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A inteligência artificial (IA) inaugurou geradores de texto que escrevem ensaios, poemas e resumos com potencial de reproduzir formatos e estilos inéditos com a mesma qualidade dos escritos de Edgar Allen Poe ou Machado de Assis. Qual não será nossa surpresa quando, em três cliques, nos depararmos com teses de doutorado mais refinadas que as do MIT ou de Harvard, sem qualquer contribuição humana.

Diante dessa realidade, a cantora Madonna causou polêmica ao anunciar que deixou um documento para que, após sua morte, a humanidade esteja impedida de usar imagem ou voz através da inteligência artificial. A intenção é boa e clara – afinal, a artista sabe o que quer deixar de legado artístico para o mundo e precisa garantir que este permaneça intacto. Uma decisão tão legítima quanto de difícil implementação, pois não há ninguém que garanta que seu desejo será atendido.

Letícia Provedel Foto: Divulgação

A começar porque a proteção da interpretação artística em si é frágil. O direito não dá ao artista a exclusividade sobre sua forma de interpretar, por mais original que ela seja. Como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), “Copiam-se obras, não interpretações. Nunca, em todo o mundo, passou pela cabeça de ninguém dar direitos exclusivos a uma interpretação ou sobre o modo de atualizar uma obra. Ninguém reprovou a Mireille Mathieu cantar como Edith Piaf”. Há milhares de “covers” da Madonna em todos os países do mundo, copiando seu visual e interpretação de forma fiel.

Se qualquer humano pode imitar a interpretação musical de um artista, por que a máquina não poderia? Acrescente-se que a máquina tem mais chances de fazer essa reprodução de forma ainda mais fidedigna – e sem desafinar. Ou alegará a Madonna que a imitação da máquina ficou perfeita demais?

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Igualmente precipitada é a ideia de que a tecnologia é inevitável e que os artistas devem aderir à IA, bastando que cedam esses direitos às gravadoras ou gestores que poderão fazer esse controle e obter-lhe justo retorno financeiro. Afinal, o Código Civil não permite sequer que o artista ceda direitos por definitivo sobre sua voz e sua imagem, pois os direitos da personalidade são considerados pela lei como irrenunciáveis e intransferíveis.

Para aumentar a balbúrdia, acrescentemos o fato de que a lei apenas confere aos artistas, em vida, autorizar ou não o uso da sua voz e imagem. Os direitos da personalidade nascem e morrem com seu titular e aos herdeiros é garantido apenas o direito de tomar medidas que resguardam a reputação do(a) falecido(a).

A Lei de Direitos Autorais é clara no sentido de que a proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, “quando associadas às suas atuações” (art. 90 § 2º). Se o artista não interpretou nem executou, qual seria o objeto da licença? A voz? O STJ já acenou ao entendimento de que, “não havendo obra autoral executada, não há falar em direito conexo”.

Pertenceria então à máquina o direito autoral sobre a obra musical que criou? Tampouco. No Brasil, assim como na maior parte dos países do mundo, é obrigatório que o autor de uma obra seja uma pessoa física. Uma máquina não pode ser titular de direitos ou obrigações. Se é difícil impor a uma máquina um direito ou obrigação, como condená-la por violação?

O mesmo argumento serve para o criador da máquina no tocante à Inteligência Artificial Regenerativa. Afinal, neste tipo de IA a máquina aprende com ela mesma e cria coisas sem intervenção humana. Daí tampouco se poderia atribuir autoria ao criador da máquina, que não contribuiu para a criação da obra em si, e tampouco se poderia condená-lo por algo que a máquina fez.

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E como comprovar, dentre todo o legado existente no mundo, que determinada obra gerada por IA resultou de seu acesso a um conteúdo específico protegido por lei? Como comprovar que houve sequer acesso a um conteúdo protegido? Como saber se a reprodução daquela voz partiu de uma música, cujos direitos conexos podem ter sido licenciados para uma gravadora, ou de uma entrevista dada pelo(a) artista no passado? Ou se a voz foi criada pela máquina sob uso de inúmeras referências isoladas? E quem poderá assegurar que aquela nova obra que reproduz fielmente a voz da Madonna não se originou de um de seus “covers” e não dela própria?

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As dificuldades de se chegar a um comércio justo das obras intelectuais geradas por IA são incontáveis. A regularização do comércio de obras criadas por inteligência artificial, ao que parece, encontra tanta dificuldade para sua proibição quando para sua liberação. Qualquer que seja o diploma legal analisado (Lei de Direitos Autorais, Lei de Software, Código Civil, Lei Geral de Proteção de Dados e mesmo a Constituição Federal), são encontradas barreiras que inviabilizam ou dificultam a instrumentalidade do comércio legal. A começar pela dificuldade de delimitação do objeto protegido, sua titularidade e os limites desses direitos.

Restará aos desenvolvedores de IA desenvolver mecanismos de transparência quanto à originação da informação, obter a devida licença para inclusão das informações em suas bases de dados e a criar mecanismos de remuneração justa dos criadores, dando respostas no campo concreto à legislação já existente, até que se garantam leis que regulamentem as criações feitas pelas máquinas. E caberá aos artistas e agentes prever esses desdobramentos e antecipar soluções no campo concreto e darem uma resposta em tempo de protegerem seu legado da mais absoluta banalização. Por ora, que nos desculpe a Madonna, mas a questão ainda não se resolve assinando um documento.

*Letícia Provedel é sócia da área de Propriedade Intelectual e Entretenimento do Souto Correa Advogados

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