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Opinião | Mais uma proposta de anistia

Por desconhecer a história, Bolsonaro e seus toscos seguidores civis e militares se esquecem de que concessões de anistia tendem a consagrar a perigosa ética de que os fins - quaisquer sejam eles - justificam os meios. Nesse cenário, portanto, nada impediria que os inimigos da democracia voltassem, uma vez anistiados, a recorrer à violência e a aplaudir militares inconsequentes e de vocação autoritária

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convidado
Por José Eduardo Faria

Com a hipocrisia, inconsequência e irresponsabilidade que o caracterizam, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que se encontra inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, anunciou recentemente sua última chantagem às instituições. Bolsonaro prometeu “pacificar a Nação” desde que seja concedida a anistia a ele e a todos aqueles que participaram das manifestações ocorridas em janeiro de 2023 contra posse de um presidente da República eleito democraticamente em 30 de outubro de 2022.

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Reconhecendo que o país se encontra dividido em decorrência da polarização ideológica, Bolsonaro afirmou que é preciso ceder para pacificar a nação e pediu que a anistia seja ampla a irrestrita aos golpistas de 8 de janeiro de 2023. No entanto, em vez de dizer o quanto estava disposto a ceder, ele, como se nada tivesse a ver com a ofensiva contra a democracia e a deterioração institucional ocorridas no país no tempo em que foi chefe da Nação, jogou a responsabilidade no colo do presidente do TSE que o condenou, acusando-o de ter tomado decisões infundadas e injustas.

Vinda de quem ameaçou explodir um quartel nos tempos em que era um desconhecido tenente, de quem pediu o assassinato de um presidente da República, de quem apontou um torturador como herói da nação e de quem acusou a cúpula do Poder Judiciário de cometer excessos, essa proposta de anistia peca, de início, pela total da falta de credibilidade. Além disso, o ex-presidente incorre em flagrantes erros históricos.

Vejamos um exemplo ilustrativo. Nos países latino-americanos que transitaram de uma ditadura militar para a democracia, durante a segunda metade do século 20, os que mais tiveram sucesso em matéria de respeito à ordem constitucional, às liberdades públicas e aos direitos fundamentais foram, justamente, aqueles cujas democracias não tiveram receio de condenar militares por crimes cometidos no período ditatorial. E, inversamente, os países que tiveram esse receio, anistiando “gente que matou, que soltou bomba, que roubou e que sequestrou avião”, a ponto de desresponsabilizar quem atentou contra o Estado de Direito, foram o que mais ficaram sujeitos a novos retrocessos institucionais. O Brasil é um deles.

Por desconhecer a história, Bolsonaro e seus toscos seguidores civis e militares se esquecem de que, em vez de ser um mecanismo de pacificação da vida social e política do país, concessões de anistia tendem a consagrar a perigosa ética de que os fins - quaisquer sejam eles - justificam os meios. Nesse cenário, portanto, nada impediria que os inimigos da democracia voltassem, uma vez anistiados, a recorrer à violência e a aplaudir militares inconsequentes e de vocação autoritária.

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A própria história brasileira é farta de exemplos nesse sentido. Basta lembrar fatos ocorridos após a queda da ditadura militar e a redemocratização do país, entre 1985 e 1988. Um desses acontecimentos foi o debate sobre a responsabilização dos envolvidos nos trabalhos mais sujos do período ditatorial iniciado em 1964. Após o restauração da democracia, as Forças Armadas não foram devidamente enquadradas e incriminadas, como lembrou o próprio Bolsonaro no seu pedido de anistia em causa própria. Com isso, os militares – e entre eles Bolsonaro e aqueles que estão em seu entorno - continuaram acreditando que detinham um “poder moderador” nos mesmos moldes daquele que foi previsto pela Constituição imperial outorgada em 1824 por d. Pedro I, o que lhes permitiria desestabilizar as instituições democráticas e a ordem jurídica quando seus interesses e vontades não fossem atendidos.

A história política latino-americana contém exemplos marcantes. Eles mostram que, em alguns países que restabeleceram o Estado de Direito após anos de ditadura militar, vários dirigentes eleitos pelo voto popular careceram de força quando precisaram enquadrar oficiais que afrontaram liberdades públicas e direitos fundamentais que haviam prometido cumprir. Em vez de exercer sua autoridade, esses dirigentes contemporizaram, contentando-se com negociações e concessões destinadas a evitar punições exemplares ... em nome da pacificação. Não compreenderam assim que, quanto mais lenientes foram e quanto mais se deixaram levar por propostas de anistia, mais abriram caminho para novas períodos de instabilidades institucional. Essa é a lição a ser aprendida: parte significativa do bolsonarismo sempre foi antidemocrática por princípio. Sempre foi integrada por cidadãos insatisfeitos com as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral tomadas com base no que chamam de “corporativismo doentio” de seus magistrados.

A partir de algumas conquistas políticas e de muita repressão policial e militar, a geração a que pertenço aprendeu com muito sofrimento os perigos subjacentes à contemporização daqueles que jamais respeitaram o princípio da responsabilidade na vida pública. A história brasileira moderna e contemporânea ensina que, quando não há punição exemplar para quem atentou contra o Estado democrático e recorreu à violência destrutiva, o Estado de Direito tende a ser corrido com o tempo. Esse é o preço que o país até hoje continua pagando por não ter desenvolvido, ao longo de sucessivas gerações, uma cultura jurídica de firme oposição às brutalidades e os crimes cometidos por quem defende regimes ditatoriais e, graças ao instituto da anistia, jamais é responsabilizado por suas iniciativas destrutivas.

Por isso, a proposta de anistia de Bolsonaro feita em nome da pacificação da sociedade, não merece o menor crédito. Se o Brasil tivesse se desenvolvido subordinando todos – inclusive militares – ao império da lei, certamente teria se desenvolvido de um modo mais democraticamente consistente no plano institucional. E, com isso, teria tido um destino menos sujeito a golpes de militares indignos da farda.

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José Eduardo Faria
Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito a USP e membro do Comitê de Pesquisa e Inovação da Fundação Getúlio Vargas. Foto: Arquivo pessoal
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