A Semana Moderna de 22 é fruto de várias influências, uma das quais o chamado futurismo. Oswald de Andrade chegou a chamar Mário de Andrade, com quem depois viria a se desentender, de “meu poeta futurista”. O futurismo foi movimento criado por Filippo Tommaso Marinetti, que lançou em 20.2.1909, no “Le Figaro”, o “Manifesto Futurista”. Dele constava, de forma provocativa e insólita: “Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos contra o moralismo, feminismo, toda covardia oportunista ou utilitária. Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer e pelo tumulto; nós cantaremos a canção das marés de revolução, multicoloridas e polifônicas nas modernas capitais; nós cantaremos o vibrante fervor noturno de arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas elétricas; estações de trem cobiçosas que devoram serpentes emplumadas de fumaça; fábricas pendem em nuvens por linhas tortas de suas fumaças.; pontes que transpõem rios, como ginastas gigantes, lampejando no sol com um brilho de facas; navios a vapor aventureiros que fungam o horizonte; locomotivas de peito largo cujas rodas atravessam os trilhos como o casco de enormes cavalos de aço freados por tubulações. E o voo macio de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado”.
Quem conheceu Marinetti e com ele conviveu foi Giovanni Papini. Isso foi em final de 1913. Narra Papini que, nessa época, ele já havia ultrapassado o meio do caminho de nossa vida, mas difundia uma vitalidade vertiginosa e vibrante, fora do comum. Vestia-se com elegância milanesa, se movia com energia elástica e impulsiva e se utilizava de palavras bem esculpidas e peremptórias. Tinha grande resistência física. Depois de longas e insones viagens, tomava um banho quentíssimo, bebia uma taça de café e logo estava saltitante, disposto a escaramuças e batalhas verbais que duravam horas e horas.
Sua chegada à pacífica Florença daquele tempo equivalia à queda de um meteorito em chamas, sobre um velho jardim ducal. Por causa de suas algazarras diurnas e noturnas, foi julgado, então e depois, pouco mais do que um mentecapto frenético e questionador. Dizia-se que D’Annunzio o definira como “o cretino fosforescente”. Mais mordaz e feroz a definição atribuída a Petrolini: “um idiota com traços de imbecilidade”.
Não era o que pensava Papini. Para ele, Marinetti possuía um tipo de inteligência intuitiva e instintiva, ainda que nada profunda. E também certa cultura, recolhida em colégios jesuíticos e nos cafés de Paris e Milão. No fundo, era uma boa alma, capaz de amizades fraternais e de impulsos generosos. Era de substância burguesa. Terminou formando casa e família e foi sinceramente enamorado de sua mulher e filhas.
Suas teorias, com frequência ingênuas e confusas, recolhera aqui e ali, sobretudo nos cenáculos e nas revistas francesas. No seu conjunto, constituíam uma espécie de “dannunzianismo” acomodado aos mitos mais grosseiros da civilização mecânica. Mas para quem se detiver na análise da atmosfera angustiante dos anos que prepararam a Primeira Guerra Mundial, reconhecerá que a irrupção do futurismo, antes de converter-se em marinettismo, exerceu alguns efeitos saudáveis. Marinetti obrigou a grande parte da sonolenta e anquilosada burguesia italiana a apaixonar-se pelos novos problemas da arte e da literatura e a entrar violentamente em contato com as buscas e descobrimentos do novo espírito europeu.
Foi como uma daquelas brutais ventanias furiosas e outonais que levantam sujeira e poeira, mas que, ao mesmo tempo, levam um pouco de refrigério à cidade semimorta e até algum bom sopro salubre do alto-mar.
Sua sorte foi estranha e dolorosa. Este homem, nascido na Alexandria do Egito, que se vangloriava de haver mamado leite de uma nutriz sudanesa e que fora educado nos colégios e nos cabarés franceses, e que conhecia o francês bastante melhor que o italiano, e começou sua vida literária com uma revista cosmopolita, “Poesia”, onde se publicavam versos e prosas em todas as línguas, foi um dos mais frenéticos defensores do amor pátrio. Seu amor pela Itália era um dos sentimentos mais sinceros de sua vida. E, apesar de seu tenaz nacionalismo, teve de reconhecer que sua pregação foi acolhida, mais do que na Itália, por certos alemães e por certos artistas da Rússia soviética.
Começara sua campanha como destruidor e burlador de toda convenção acadêmica e acabou como secretário da seção de letras da Academia da Itália. Jovem, se apresentava como um Don Juan, ou um Casanova do século XX. Acabou como esposo feliz e pai afetuoso. Proclamara que a guerra era “a higiene do mundo”. Viveu bastante para reconhecer que a guerra dissipara seus sonhos de grandeza e pusera em perigo a própria existência livre da pátria que tanto amava.
O último encontro entre Papini e Marinetti foi em 1942. Estava enfermo, envelhecido, irascível e inquieto. Anos finais tristíssimos, quase trágicos. Assim como a maior parte dos homens, se equivocou e pecou. Apesar do amor à poesia e à Itália, sofreu e amargou bastante.
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