A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), deu um voto histórico no plenário virtual para descriminalizar o aborto até a 12.ª semana de gestação.
“A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional”, afirmou a ministra.
É a primeira vez que o posicionamento é defendido no STF fora da análise de um caso concreto, ou seja, como regra geral para toda a sociedade.
O voto da ministra tem 103 páginas e evita tomar partido sobre temas espinhosos, como ética religiosa, valores morais e a controvérsia de quando a vida começa.
Rosa buscou enquadrar o tema a partir de uma perspectiva essencialmente jurídica, com destaque para os direitos da mulher sexuais e reprodutivos da mulher.
A ministra defendeu que a mulher deve ter a prerrogativa de decidir se deseja interromper a gravidez, desde que o procedimento seja realizado dentro do primeiro trimestre de gestação.
Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna.
Rosa Weber
A legislação hoje permite o aborto em apenas três situações - violência sexual, risco de morte para a gestante ou feto com anencefalia.
Até o momento, só Rosa Weber votou. O julgamento no STF será retomado no plenário físico, mas não há data para que o tema volta à pauta.
Interlocutores de Rosa Weber avaliam que a presidente do Supremo não queria abrir mão do voto em uma pauta importante para as mulheres, sobretudo por saber que corre o risco de ser sucedida por um mais um homem no STF. A indicação do novo ministro cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que apesar as pressões de setores progressistas tem resistido a usar o gênero como critério para filtrar os candidatos.
Entenda em cinco pontos o voto de Rosa Weber
Ética cristã x Estado laico
Rosa afirma no voto que o debate sobre o aborto tem sido guiado pela ‘moralidade pública derivada da ética religiosa’, que na avaliação da ministra negligencia o espaço da autonomia privada e o caráter laico do Estado. Ela defende a imparcialidade do poder público diante de ‘questões de moralidade e ética pessoal’.
“Cada pessoa tem sua esfera privada moral e ética de como se comportar e agir em sociedade, a partir de convicções próprias e crenças. Contudo, a esfera da moral privada não pode ser confundida com a esfera da moral pública, e principalmente com o espaço de atuação do Estado de Direito, na restrição dos direitos fundamentais”, diz um trecho do voto.
Direito à vida
A ministra também evita entrar no debate sobre o início da vida. Hoje, há diferentes marcos defendidos, como a partir da concepção, quando o embrião chega ao útero ou com o começo da atividade cerebral.
“A pretensão em resolver a difícil questão de quando a vida começa não pertence ao campo jurídico, tampouco a essa arena jurisdicional. Dessa perspectiva de observação, não se trata de fato constitucional relevante para a solução normativa da presente controvérsia constitucional”, defende Rosa.
A abordagem da ministra toma como base o texto da Constituição. Ela afirma que não há referência, em qualquer passagem do texto constitucional, aos não nascidos, seja na condição de embrião ou de feto.
“Nessa linha normativa, o argumento do direito à vida desde a concepção como fundamento para justificar a proibição total da interrupção da gestação, por meio da tutela penal, (...) não encontra suporte jurídico no desenho constitucional brasileiro”, pontua a ministra.
A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional.
Rosa Weber
Direitos da mulher x direitos do feto
A presidente do STF defende que, se a Constituição não assegura direitos fundamentais ao feto, a decisão da mulher sobre a gestação deve prevalecer.
“A vida humana tem graus de proteção diferentes no nosso ordenamento. Desse modo, a depender do estágio de desenvolvimento biológico do feto, diminui-se o interesse em sua proteção face à precedência da tutela dos direitos da mulher”, afirma.
Rosa afirma que a criminalização do aborto, sem restrição, viola os direitos das mulheres à intimidade, à liberdade reprodutiva e à dignidade.
“Não há falar em proteção do valor da vida humana sem igualmente considerar os direitos das mulheres e sua dignidade em estatura de direitos fundamentais e humanos”, escreve.
Descriminalização
A presidente do STF também defendeu que a criminalização do aborto é uma solução ‘ilusória’ para o problema.
“A criminalização mostra-se como tutela ineficiente e inadequada na redução do estigma social da discriminação, assim como na conformação das políticas estruturantes do sistema de justiça social reprodutivo, baseado na acessibilidade, na igualdade de oferta e na autonomia da mulher em conduzir o planejamento familiar e seu projeto de vida”, diz outro trecho do voto.
Saúde pública
Rosa defendeu que o poder público deve promover e proteger os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e adolescentes a partir da perspectiva da saúde pública. O direito a um procedimento seguro, argumenta a ministra, tende a reduzir os índices de mortalidade materna.
“A tutela integral e efetiva do direito à saúde das mulheres, incluída sua saúde reprodutiva, abarca também o direito ao procedimento seguro da interrupção voluntária da gestação, em seu estágio inicial, como medida precisa para a redução da mortalidade materna”, afirma a ministra.
Ela argumentou ainda que as mulheres estão sujeitas a falhas de métodos contraceptivos e, diante desse risco, precisam ter autonomia para decidir seu ‘projeto de vida’: “A falha na contracepção, repito, é fenômeno completamente alheio ao controle da mulher. Ao assim exigir e regulamentar a conduta, impõe-se responsabilidade com restrição excessiva e desmedida sobre a mulher.”
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