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Mauro Cid preso por ataques à PF e a Moraes: o que acontece se sua delação cai por terra? Entenda

Criminalistas consultados pelo Estadão analisam situação de ex-ajudante de ordens de Bolsonaro após divulgação de áudios em que o militar aparece desqualificando investigação sobre trama golpista e criticando ministro do STF

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Foto do author Pepita Ortega
Atualização:
Ex-ajudante de ordens da Presidência da República durante o governo de Jair Messias Bolsonaro foi preso nesta sexta-feira, 22 por suposta obstrução de Justiça Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Uma eventual rescisão do acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid não afetará a validade das provas colhidas pela Polícia Federal. Também não afetaria pontos já corroborados pelos investigadores que continuarão a fundamentar os inquéritos que miram o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados. Essa é a avaliação de criminalistas e professores consultados pelo Estadão, que apontam as possíveis consequências de uma derrubada da colaboração do ex-ajudante de ordens da Presidência.

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Especialistas alertam que a questão central para se tratar dos impactos de uma eventual a rescisão é saber que desfez o acordo: o delator ou a autoridade? A revogação do acordo, sustentam, é medida extrema. Antes disso, se houver previsão nos termos assinados pelas partes Mauro Cid poderia ser punida de outra forma. Os criminalistas também entendem que as gravações de Mauro Cid podem abastecer as defesas de outros investigados implicados pelo militar, como o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Mauro Cid foi preso nesta sexta-feira, 22, após deixar oitiva com o desembargador Airton Vieira, juiz instrutor do gabinete do ministro Alexandre de Moraes, para confirmar os termos de sua delação premiada. Ao ser informado da nova detenção, Mauro Cid desmaiou na sala de audiências do STF e foi atendido por socorristas. O mandado de prisão, com caráter preventivo, foi expedido por Moraes por descumprimento de medidas cautelares e obstrução à Justiça.

O Supremo Tribunal Federal informou que a validade da delação de Cid ‘está sob análise’. A oitiva do ex-ajudante de ordens da Presidência ocorreu após a divulgação de áudios em que ele diz que o inquérito da Operação Tempus Veritatis é uma “narrativa pronta”. Nos áudios, o militar também diz que Moraes já tem a sentença dos investigados. As gravações foram reveladas pela revista Veja. Em uma delas, Cid afirma que os investigadores ‘não queriam saber a verdade’ sobre a tentativa de golpe de Estado, e sim confirmar uma ‘narrativa pronta’.

Quais os possíveis impactos de uma eventual rescisão da delação de Cid?

O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo Sergio Salomão Shecaira pondera que os relatos de Mauro Cid ‘muito provavelmente’ estão corroborados por outras provas e que essa situação, eventualmente, pode ‘permitir que se prescinda’ da delação. De outro lado, há a hipótese de que a colaboração seja necessária para que haja uma continuidade na investigação de algum fato determinado – vertente que pode implicar em um ‘enfraquecimento’ da apuração pela PF.

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“Vamos imaginar o seguinte. Nós não sabíamos que uma pessoa morreu. Mauro Cid chega e fala João morreu. As pessoas vão atrás e acham o cadáver. Eu não posso partir da premissa que João não tenha morrido porque foi invalidada a delação. Se eu achei o cadáver, João está morto. Tudo aquilo que ele falou e que foi confirmado por outras formas de provas, serão válidas, no sentido de que, o que ele indicou, de fato aconteceu. João morreu. Agora se ele falou João está morto e não encontrou a prova da morte, o simples fato de não ter encontrado já enfraquecia a prova. E ainda assim ele está com a pecha de mentiroso ou a de uma pessoa que disse alguma coisa e se desdisse”, explica.

Segundo o professor, o que ‘foi demonstrado está demonstrado’. “Alguém pode dizer que a palavra de um mentiroso não vale nada. Não a palavra de um mentiroso vale tudo desde que você ache que o mentiroso, naquela circunstância falou a verdade. João morreu”, completou.

O professor Maurício Zanoide, titular de Processo Penal da Faculdade de Direito da USP, considera que a questão central de uma discussão sobre os impactos de uma eventual derrubada da delação de Cid é a ‘causa’. “A rescisão seria declarada por culpa de quem? Quem cometeu a irregularidade? A partir daí há possíveis meios de prova que devem ser tiradas da mesa”.

Ele explica que, na hipótese de uma rescisão, os relatos de Cid – o termo de delação e o vídeo dos depoimentos – não podem ser usados pela Polícia Federal, mas a ‘informação é sabida, ninguém deslembra’. “Quando Cid estava preso, a PF fez apreensões na casa dele. Eles já tinham elementos, e depois eles foram usados por ele para dar uma contextualização. Essa contextualização, que é o depoimento, sai da mesa, mas o que foi narrado aos policiais, eles não vão esquecer. Eles vão saber narrativa e vão dizer: ‘aquela nossa suspeita, ele confirmou, mas já tínhamos o documento”, indica.

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Um cenário diferente é se Cid levou um documento que a Polícia não tinha. “Aí a questão não é da narrativa, ela continua não sendo mais usável. Mas a pergunta é o que fazer com os documentos. Se a parte que cometeu a irregularidade que levou a rescisão não foi o órgão público, eles vão querer usar aqueles documentos”, indica.

Uma outra hipótese é se o colaborador alega que foi ‘ameaçado, induzido, de qualquer forma, física ou psicológica e o que ele disse foi contaminado por vício de vontade, porque foi enganado ou forçado’. “Aí o ato irregular é da autoridade. Se ficar demonstrado que houve uma ilegalidade da autoridade, aquele material fornecido pode ser tirado da mesa. Ele que forneceu. Não o que foi apreendido inicialmente, independente da colaboração, esse não sai mais da mesa”, explica.

Há ainda a questão das provas que só foram obtidas em razão de ‘informações que foram tiradas da mesa por conta da violação do negócio jurídico processual’. “No campo processual, a ilicitude de uma fonte de prova, na obtenção da prova, contamina todas as provas que dela derivaram direta ou indiretamente. Mas se não há cadeia de derivação, aí não, são meios autônomos, diversos. Tudo o que eu tirar da mesa, sai junto com tudo que dele derivou”, aponta.

Ainda de acordo com o professor, a eventual contaminação de provas depende do quanto a delação, se declarada nula, resultou em determinado achado ou baseou uma decisão. “As contaminações por derivação se dão para frente e não para os lados”, indica. Zanoide pondera que é necessário avaliar de onde partiram as informações que culminaram em determinada descoberta, na investigação – delação, levantamento de campo, quebra de sigilo. Assim é possível classificar os achados como ‘fonte independente de prova’, não impactada por qualquer decisão quanto à delação de Cid.

O criminalista Dainel Bialski – que já representou a ex-primeira-dama Michele Bolsonaro e defende o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (que teve delação anulada pelo STF) – diz que as provas coletadas pela PF seguem valendo, mas indica que os impactos de eventual rescisão dependem diretamente do motivo para a mesma.

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“Você só coloca em discussão tudo, se ficar provado que ele (Cid) mentiu desde o dia 0, desde o início disso tudo. Mas como não é o caso, as outras provas, as outras investigações vão tá valendo. O raciocínio é muito parecido com a questão da Lava Jato. Só anula as provas se a prova primária tiver maculada de um vício incurável. Não me parece ser o caso, porque ele de fato prestou diversos depoimentos, trouxe várias provas e a partir daí se descobriram outras provas, que geraram outras investigações, outras apreensões e ele não tem como fugir disso. Até porque são investigações independentes”, apontou.

Bialski não vê como comparar o caso da Lava Jato – dinamitada após o reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro – e o caso Mauro Cid. “A ordem de prisão me parece muito mais ligada a uma falta dele, que ele não teria cumprido com o que ele tinha que cumprir, do que comprovação de que ele mentiu e por conta disso tudo que ele falou poderia ser jogado na lata do lixo. Ele vai ser penalizado por ter violado os termos da determinação dele”.

Segundo Bialksi, se a partir de um relato de Cid, a PF encontrou provas cabais, corroborando o relato, mesmo se a palavra do delator for invalidada, os elementos não são ‘jogados fora’, vez que constituem um ‘fato incontroverso, comprovado’.

Rescisão seria ‘extremo’ e depende dos termos do acordo

Bialski ressalva que não se sabe os termos da delação de Cid, o que ele podia ou não fazer, o que leva a diferentes tipos de avaliação. No entanto, o criminalista considera que a rescisão do acordo é ‘muito difícil’.

“O que eles fazem normalmente é dar chance para a pessoa corrigir algo que tenha feito de errado. Porque na maioria das delações tem lá um dispositivo que coloca ‘uma eventual omissão pode causar uma retificação, uma complementação’. Então a rescisão é um extremo. Eu não acho que o Supremo vai, de cara, rescindir. O que a gente vai precisar esperar é os termos de uma possível rescisão, para poder avaliar o que vai ser mantido ou não e porquê. Não é uma questão objetiva é uma questão muito mais complexa”, explicou.

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Na mesma linha, Zanoide explica como a delação é ‘um negócio jurídico feito através de um contrato, documento assinado, que estabelece decisões, objeto e consequências’. “Não é um contrato de adesão, não é totalmente amarrado em que as partes não tem condição de estabelecer cláusulas específicas. Não sei como foi feito esse acordo. Pode ser que ele traga possibilidades de que certos descumprimentos gerem certas sanções, outros descumprimentos gerem outras sanções e um nível x de descumprimento leve a rescisão de acordo. Depende do que está no papel”, indica.

Segundo o professor, a depender do que consta no acordo firmado por Cid, pode haver descumprimentos que gerem algumas sanções e que não leve a rescisão. “Já tive uma oportunidade de ver, participar, atuar em vários acordos que diz que o descumprimento das obrigações tais, a critério do Ministério Público, podem gerar novas sanções ou até mesmo a rescisão desse negócio. Então depende de como está escrito”, relata.

Delação

Shecaira explica que a delação premiada depende de uma confirmação, vez que o investigado concorda em falar com as autoridades sob uma ‘pressão geral’. “É algo que ele não gostaria de fazer, delatar pessoas com as quais ele teve envolvido durante o período, mas ele ainda assim o faz porque ele tem elementos de convicção e prova que podem permitir você chegar a outros fatos”.

O professor explica que, qualquer delator não fecha acordo com investigadores somente com base em ‘abstrações’, devendo comprovar de alguma forma fatos que ele delatou.

“Ele não pode pura e simplesmente, pegar aquilo que apreenderam - e muita coisa estava no celular dele, nos documentos apreendidos - e simplesmente dizer ‘isso daí é verdade’. Que mais você tem além disso? ‘Ah, eu tenho, além disso, isto’. Então a própria delação já se perfaz com alguma coisa concreta, que vai ser localizada mais adiante com uma busca dessas outras provas complementares. É nessa fase que nós estamos segundo eu entendo. Então, provavelmente tem coisas já corroborada por prova.”, indica.

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Segundo o professor, a ‘delação não é uma boa prova é o início da prova’. “Só para ela ser delação já há necessidade de que esse início de provas seja corroborado por alguma outra coisa, e, posteriormente seja mais corroborado ainda por outras coisas que se podem ter a partir daquela delação”

Defesa de outros investigados

A avaliação dos especialistas consultados pelo Estadão é a de que os áudios divulgados pela revista Veja municiam sim a defesa de outros investigados implicados por Mauro Cid, como o ex-presidente Jair Bolsonaro.

“A defesa vai falar ‘está vendo como ele é mentiroso. Ele tá dizendo que só falou porque pressionaram ele, por que que eu vou dar credibilidade a ele’. Aí do outro lado a PF vai falar: ‘mas ele falou isso e a gente provou, está aqui’. E vai se colocar isso numa balança para dizer, ‘olha o que tá pendendo mais? tem mais prova de que ele é mentiroso ou tem mais prova do que ele falou realmente se comprovou?’ E a partir daí a Justiça vai agir”, indicou Bialski.

Segundo o criminalista, as frases do delator indicam que ‘estavam forçando ele a falar certas coisas’. Nessa linha, as defesas de outros investigados devem ‘explorar isso da melhor maneira possível’, explicou o advogado. Ele chama atenção para o interlocutor de Mauro Cid – dependendo do status de quem recebeu o áudio do ex-ajudante de ordens, se for um outro investigado que cumpre medida cautelar, por exemplo, a pessoa também tem risco de ser presa, assim como aconteceu com o delator nesta sexta, 22.

O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo Sergio Salomão Shecaira pondera que a defesa dos demais investigados ‘sempre vai ficar naquela brecha para tentar dizer que tudo que está o seu redor é uma ficção’.

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“É isso que faz o advogado de defesa. Em um certo limite, a defesa recebe um pouco de pólvora para suas armas. Mas eu acho que no atual estágio, essa pólvora não será suficiente para nenhuma outra coisa importante. Porque o que mais se precisa para provar que houve um acordo, do que um documento escrito, que é o que se tem. Se não bastasse o documento escrito e a primeira coisa que nasce é um documento escrito, há a gravação de uma reunião em que todo mundo dizia da necessidade de se tomar providências. Então nós temos um documento escrito produzido a partir de uma reunião que foi gravada e é pública. O que mais precisa? Ter o golpe de estado?”, pondera.

Ato preparatório x Ato de execução

Shecaira explica ainda que uma outra discussão que deve ser levantada pela defesa dos investigados no inquérito sobre suposta tentativa de golpe de Estado é se a reunião de cúpula do governo Bolsonaro de junho de 2022 e a ‘minuta do golpe’ já constituiriam um ‘ato executivo’ dentro do chamado ‘itinerário do crime’.

Segundo o professor, o itinerário de um crime qualquer tem quatro fases: primeira fase é a anímica, daquilo que se produz na cabeça; a segunda são atos preparatórios; a terceira do ato de execução; e a quarta fase do atingimento da meta.

“Se eu quero matar alguém, a primeira coisa que acontece na minha cabeça é o decidir que eu quero matar alguém. Ato anímico. No segundo momento eu vou comprar o revólver, ato preparatório. O terceiro momento eu vou atirar, ato de execução e no quarto momento, eu vou acertar ou não e causar a morte ou não, atingimento da meta”, explica.

Segundo o professor, crimes em geral são considerados crimes a partir dos atos de execução, no momento em que se ‘aperta o gatilho’. Já outros delitos, esse momento para se considerar crime é antecipado, para impedir haja ‘resultados concretos’. “Por exemplo em um crime de explosão, se eu tiver que esperar que a bomba exploda todo mundo morre com a bomba. Antecipa-se um pouco, para impedir que aquela bomba exploda”, explica.

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“Em um crime de golpe de estado, eu não tenho que esperar o golpe, basta estruturação do golpe do Estado. No plano da discussão teórica, os advogados de defesa vão ter que demonstrar que não houve atos preparatórios de um golpe de estado. Não é a delação do Cid que vai mudar essa existência. A facticidade já tá demonstrada. Então isso por exemplo não muda nada”, segue.

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