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‘Meu pai nasceu na Ndrangheta e não teve escolha até colaborar’, diz filho de ex-capo da máfia

Em entrevista ao Estadão, ‘Nemo’ Bonaventura, filho de Luigi Bonaventura, conta a aflição da família na busca pela separação definitiva da cruel e sanguinária organização criminosa do Sul da Itália

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Foto do author Heitor Mazzoco
Foto: Reprodução via @striscialantimafia/Instara
Entrevista com'Nemo' BonaventuraFilho do ex-capo da máfia calabresa, Luigi Bonaventura

Entre 2006 e 2007, Luigi Bonaventura, 53, decidiu renunciar ao laço familiar que o ligava à máfia ‘Ndrangheta, da Calábria italiana, e colaborar com investigadores antimáfia. Desde então, aquele que estava marcado para ser o ”boss” diante de suas origens, passou a ser alvo de integrantes de uma das organizações criminosas mais violentas do mundo.

Luigi Bonaventura decidiu deixar a máfia quando percebeu que seus filhos ― um casal ― estavam sujeitos ao mesmo caminho que ele teve, sem escolha, três décadas antes. Bonaventura tem parentesco com Luigi Vrenna, conhecido como U Zirru (1909-1992), que comandou uma das ramificações da máfia calabresa na região de Crotone. Assim, U Zirru era um capobastone da ‘Ndrangheta, uma espécie de chefe local.

O pai de Luigi Bonaventura também seguiu pelo mesmo caminho. Luigi, então com 10 anos, já era criado para ser um soldado da máfia. “Meu pai foi forçado pelo pai (dele) e pelos familiares a ser um soldado (da máfia), um assassino em formação”, disse ‘Nemo’ Bonaventura, filho de Luigi Bonaventura, em entrevista exclusiva ao Estadão.

Apoie a colaboração e você finalmente terá um país livre. Aos antimafiosos, digo, nunca desistam, se você recuar, eles vão cortar sua cabeça.

'Nemo' Bonaventura

As ameaças contra os familiares não param. ‘Nemo’ não gosta de dizer o primeiro nome diante do receio de ser encontrado com mais facilidade pelos criminosos. Hoje, vivem com rostos cobertos para evitar reconhecimento. Na entrevista abaixo, ‘Nemo’ mostra o cotidiano perigoso de um jovem que nunca fez parte de organização criminosa, mas paga pelo passado do pai. Ainda mais, paga pela coragem do próprio pai.

Nos últimos anos, ‘Nemo’ e Luigi começaram a usar as redes sociais para alertar autoridades italianas do que perigo que a família corre. Os criminosos ― ligados à máfia calabresa ou não ― foram ousados. Por meio de comentários em fotos e lives, ameaçaram ‘Nemo’ de maneira explícita.

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Um deles, disse que a família merecia ser jogada no ácido, em alusão ao pequeno Giuseppe di Matteo, morto no começo de 1996 depois de ser sequestrado ― dois anos antes ― em uma forma de intimidar seu pai para que não colaborasse com a Justiça italiana. O crime, no entanto, foi cometido pela siciliana Cosa Nostra e não pela ‘Ndrangheta.

Desde que formou uma “dupla antimafiosa” com o pai, ”Nemo” se aprofundou no assunto. “Na Itália, a máfia siciliana e a Camorra (na Campanha) estão enraizadas em seus territórios, mas a ‘big mamma’ das máfias italianas é a ‘Ndrangheta”, afirmou. Leia abaixo a entrevista com “Nemo” Bonaventura.

Por que usa o nome “Nemo”?

‘Nemo’ Bonaventura. Uso “Nemo” porque significa ‘ninguém’ em latim. E eu não sou ninguém. Ninguém como era Odisseu, ou Ulisses, que navegou por mares tempestuosos por tanto tempo.

Nos últimos anos, quantas vezes você e sua família precisaram mudar de casa?

Minha família sempre lutou pelos próprios direitos, o que nos permitiu ‘apenas’ cinco mudanças.

Você fez vídeos ao vivo e recebeu ameaças por ser filho de Luigi Bonaventura. Desde quando essas ameaças começaram?

As ameaças contra minha família começaram logo depois de meu pai começar a colaborar com a Justiça, em 2007, mais ou menos. Hoje, são ameaças pelas redes sociais. Há um ano, no entanto, havia pichações intimidatórias no estacionamento perto de casa. Há cinco anos, chegavam balas (de revólver) pelos correios enroladas em um santinho de Nossa Senhora. Uma vez, eu fui cercado por três homens, me seguraram pela garganta e disseram que ‘fumar mata’.

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'Nemo' (à esquerda) e o pai, Luigi Bonaventura: rostos cobertos em uma tentativa de evitar perseguição da máfia calabresa Foto: Reprodução via @striscialantimafia/Instara

Quando surgiu a ideia de postar nas redes sociais sobre as ameaças?

Quando meu pai entendeu estar, de fato, sem proteção. Então, ele decide usar as redes sociais e falar a imprensa. Isso faz com que ele obtenha a ‘proteção dos holofotes’.

Você sente, de alguma forma, falta de apoio do governo italiano?

A proteção está praticamente ausente, não há patrulhas, não há documentos realmente capazes de protegê-lo (o pai) e as falhas no programa de proteção não são só essas. Uma família não vive trancada em um cômodo, ela precisa se realizar com um trabalho. 20 anos trancado em casa sem contato por medo da ‘Ndrangheta só te deixa louco. Não é proteção, é prisão.

Por quanto tempo seu pai esteve ligado a ‘Ndrangheta?

Meu pai nasceu na ‘Ndrangheta e, até pouco mais de 30 anos de idade, esteve sob o controle deles. Educado desde criança com violência e mais violência. Meu pai foi forçado pelo pai (dele) e pelos familiares a ser um soldado (da máfia), um assassino em formação. Ele nunca teve escolha até decidir colaborar (com a Justiça).

Por que seu pai decidiu colaborar com a Justiça?

A mãe do meu pai não pertencia à ‘Ndrangheta, e dela meu pai herdou alguns aspectos positivos. Meu pai se casou com uma mulher que nunca se relacionou ao crime, que não sabia de sua vida (na máfia), e que diversas vezes deixou escapar, digamos, sua antipatia com as máfias. Quando minha irmã nasceu, segundo filho do casal, meu pai percebeu que teríamos que sofrer as mesmas coisas que ele, percebeu que os filhos só prejudicariam os outros. Então, é o momento em que ele decide quebrar a corrente, quebrar a maldição e se libertar junto com a família.

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Existe uma veneração pelos mafiosos principalmente por causa do cinema. As pessoas têm uma imagem, aparentemente, positiva da máfia. Isso é um erro para você?

As máfias, o crime fazem parte da sujeira, parte da doença da sociedade. Ali, nesse buraco que é o submundo, são jogados os corpos de centenas de pessoas, inclusive daquelas que entram no submundo.

O submundo é a vida ruim. Esses criminosos poluem a terra, causando tumores em você e em seus filhos ou entes queridos, esses criminosos roubam o fruto do trabalho honesto, esses criminosos arruínam as mentes dos jovens com drogas, esses criminosos usam a democracia para colocar no poder outros criminosos, criando, para todos os efeitos, narcoestados, no mínimo.

Esses criminosos serão julgados diante de Deus. O crime é um câncer, não uma coisa bonita. O crime só vencerá se não o combatermos. A propaganda da máfia funciona de duas maneiras: condicionamento e aceitação. Condiciona quem não está envolvido no crime, mas já está fascinado. Condiciona fazendo-o ver o dinheiro, as mulheres, o poder, mas sem mostrar a vida miserável que os criminosos levam, sempre em fuga. E a aceitação naqueles sujeitos que já estão em situação de pobreza.

‘Se todos ao meu redor gritam Viva a Máfia, então talvez eu tenha que continuar sofrendo violência física e psicológica, porque todos dizem que é certo, e se todos concordarem, mesmo que eu não concorde, o que eu poderia fazer? E então você simplesmente aceita’.

'Nemo Bonaventura: 'Durante muito tempo não consegui frequentar a universidade em local ‘protegido’ Foto: Reprodução via Striscialantimafia/ Instagram

Pensa em deixar a Itália um dia?

Talvez eu já não esteja na Itália. Talvez Nemo Bonaventura já teve que partir porque não havia nada na Itália. Talvez Nemo Bonaventura já retornou à Itália porque sua família estava em perigo ou para fazer sua voz ser ouvida. Talvez, hoje, Nemo esteja em viagem, porque a vida como a minha é bastante itinerante. No estado italiano, nunca importou se eu estava ou não na Itália, então o que importa onde estou: minha batalha está em meu coração, e meu coração está sempre comigo.

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Você consegue frequentar, por exemplo, universidade? Qual área de estudo você mais gosta? O que você gostaria de ser profissionalmente?

Durante muito tempo não, não foi possível frequentar a universidade em local ‘protegido’ e não tivemos acesso a fundos de reembolso, visto que vivemos com menos de 1400 euros em uma família de 4 pessoas. Travei uma batalha para ter o direito de estudar e depois de perder 2 anos, eu consegui ingressar na faculdade de direito. Não sei o que o futuro me reserva, mas o que gostaria de fazer é o que já estou fazendo: dar o meu empurrão, que juntamente com o de milhares de outros, irá finalmente trazer a mudança. As máfias são cicatrizes antigas do passado: agora é hora de curá-las completamente.

A ‘Ndrangheta, a Camorra e a Cosa Nostra ainda podem ser consideradas as organizações mafiosas mais poderosas do planeta ou a ‘Ndrangheta ficou em primeiro lugar?

A ‘Ndrangheta está, sem dúvida, no pódio das organizações criminosas junto da máfia russa, da tríade (China) e os cartéis do narcotráfico. Mas não podemos esquecer das máfias intermediárias, que auxiliam no tráfico de drogas ou de armas. Por exemplo: As máfias do Oriente Médio, frequentemente associadas a células terroristas ou separatistas, a máfia turca, que sempre foi enriquecida pelo tráfico de heroína, e a máfia albanesa, que se ocupa da distribuição de produtos no mercado europeu, muitas vezes passando diretamente para a ‘Ndrangheta.

Em linhas gerais, hoje a ‘Ndrangheta está entre as três principais máfias. Na Europa Ocidental é a primeira, na América do Sul goza de confiança inabalável com os cartéis, que dependem da ‘Ndrangheta para garantir o tráfico contínuo de substâncias, armas e dinheiro.

Na África vemos emergir as máfias nigerianas que estão tentando nesta última década criar bases no Brasil. Na América do Norte, é forte a criminalidade corporativa, através da qual empresas milionárias, por baixo da mesa, vendem toneladas de produtos catalisadores de substâncias entorpecentes. Na Itália, a máfia siciliana e a Camorra (na Campanha) estão enraizadas em seus territórios, mas a ‘big mamma’ das máfias italianas é a ‘Ndrangheta.

As máfias não atuam apenas no tráfico de drogas. Estão em outras áreas, certo?

As máfias querem tudo, porque são um poder desenfreado. As máfias são aquelas coisas que, quando chegam ao poder, tornam-se ditaduras, tornam-se oligarquias corruptas. Querem tirar tudo de você e já estão na política. Exigir transparência de seus governantes, exigir interceptações dentro dos corredores do governo é uma forma de evitar que roubem o Brasil de vocês, por exemplo.

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Qual a importância da participação de colaboradores no combate às máfias?

Os colaboradores são essenciais, são os espiões infiltrados no território inimigo, são as informações vitais para decapitar as máfias. Apoie a colaboração e você finalmente terá um país livre. Aos antimafiosos, digo, nunca desistam, se você recuar, eles vão cortar sua cabeça.

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